Título: Pobres pagam mais impostos
Autor: Prado, Maria Clara R. M. do
Fonte: Valor Econômico, 03/08/2006, Opinião, p. A13

O aumento da carga tributária brasileira é uma das façanhas dos administradores públicos que mais se discute hoje nas esquinas do país. Em termos globais, envolvendo as três esferas da administração pública e juntando os impostos, as taxas e as contribuições, incluindo o FGTS e os recursos destinados ao sistema S, além dos royalties e participações sobre petróleo e energia cobrados, os cofres das diferentes esferas de governos têm dinheiro mais do que suficiente para reprisar em várias versões o famoso baile da Ilha Fiscal.

Tudo somado, o setor privado contribuiu no ano passado com um volume de dinheiro equivalente a 38,9% do PIB. São recursos que não pertencem aos governos, mas sim à sociedade, e para esta deveriam voltar em forma de boa educação pública, mais segurança pública e institucional, melhor atendimento na área da saúde, de investimentos em rede de água e esgoto, em estradas, enfim.

Mas, para a conveniência daqueles que manejam esses recursos, a sociedade brasileira fica no escuro, sem saber onde são aplicados os quase 40% do PIB que lhe é cobrado compulsoriamente. Nada se informa, ninguém presta contas, não há acompanhamento, nem fiscalização.

Isso não é, a rigor, novidade. Também não é nova a informação de que desde o início nos anos 90 a carga tributária cresce no país em compasso muitas vezes mais acelerado do que a variação do PIB. Enquanto o comportamento deste se mantém em torno de uma média de cerca de 2% ao ano, a soma dos tributos e contribuições parece ter se descolado do nível do PIB. A tributação ganhou vida própria e se expande com vigor independente do tamanho da evolução da renda nacional.

Em 1992, a carga tributária bruta global representava 25% do PIB. No passo em que vai, tende a dobrar rapidamente em poucos anos. Também já se chamou atenção muitas vezes para o malefício do ajuste fiscal calcado no aumento da carga de tributos, ao invés do controle e corte dos gastos supérfluos e absolutamente dispensáveis e, porque não dizer, inexplicáveis.

O que talvez surpreenda muita gente pelo menor alarde com que tem sido tratado é o fato de que a carga tributária cresce com mais apetite onde não deveria crescer. Ou seja, junto aos grupos de renda familiar mais baixa, justo nas camadas da população que mais padecem pela inexistência de uma educação pública de boa qualidade e que mais sofrem com a violência urbana, com a precariedade do atendimento médico e hospitalar, enfim.

A tabela ao lado ajuda a visualizar o quadro. Mostra a profunda regressão embutida no processo de evolução da carga tributária no país. Os números foram apresentados pelo economista José Roberto Afonso, especialista em contas públicas, no painel onde se discutiu o "Choque de Gestão", no 3º Fórum de Economia da FGV-SP. Os dados baseiam-se em trabalho elaborado por Maria Helena Zockun.

Está ali claro que em apenas oito anos (de 1996 a 2004), pessoas com renda mensal familiar de até dois salários mínimos passaram a destinar obrigatoriamente ao fisco, pela via da retenção tributária, nada menos que 48,9% da sua renda familiar.

Dito de outro modo, praticamente a metade da renda de quem ganha, por exemplo, R$ 525,00, ou um salário mínimo e meio, foi parar nos insondáveis cofres do setor público. Em 1996, a carga tributária total para aquele nível mais baixo de rendimento correspondia a 28,2% dos ganhos.

Já os mais ricos, com renda familiar acima de 30 salários mínimos, enfrentam hoje um peso sobre a renda de 26,3% na forma de recolhimento de tributos. Oito anos antes, a carga para esse grupo equivalia a 17,9% da renda. O incremento da tributação para as famílias mais ricas foi muito menor comparativamente aos grupos de menor renda, fazendo com que a carga média de tributos para uma família no grupo de menor renda seja o triplo daquela que incide sobre o de maior renda.

Esses números revelam uma peculiaridade do sistema tributário brasileiro que se aprofundou ao longo dos últimos anos: a participação cada vez maior dos impostos e contribuições indiretos, como o ICMS, o IPI, o PIS e o Cofins.

Zé Roberto é implacável em suas observações. "Pior do que estar em um padrão de carga tributária acima da média dos demais países 'emergentes' é constatar que tal distorção resulta da maior incidência dos chamados impostos indiretos", diz ele. No Brasil, a tributação indireta representa cerca de 20% do PIB, enquanto que a média dos países ricos não chega a 12% do PIB.

Os mais pobres acabam sendo sobrecarregados sem saber. Pagam altos impostos, como o ICMS, nas mercadorias que compram e nos serviços que pagam e são condenados a uma renda disponível bem inferior, com agravamento da péssima distribuição de renda no país. Só que, ao invés da disputa pela renda ocorrer entre os mais ricos e os mais pobres, ela se dá entre os pobres e o setor público. E esse é apenas um dos aspectos cruéis do problema.

No fundo, a estrutura tributária só tem olhos para o tamanho da arrecadação, sem se preocupar com outros efeitos. Os governantes - e isso vale tanto para os que estão no poder Executivo, como no Legislativo e até no Judiciário - e muitos analistas que se ocupam da questão fiscal parecem não enxergar todas as mazelas provocadas por esse verdadeiro "frankenstein" em que se transformou o sistema tributário do país.