Título: Regulação bancária vira colcha de retalhos e cria custos
Autor: Masters,Brooke
Fonte: Valor Econômico, 09/04/2012, Finanças, p. C4

Quando os órgãos reguladores do setor financeiro de 27 países se reuniram na cidade suíça da Basileia, em setembro de 2010, e concordaram em obrigar os bancos mundiais a deter capital em maior quantidade e de melhor qualidade, os altos dirigentes dos bancos e os políticos saudaram o acordo como um divisor de águas. O pacto, conhecido como Basileia 3, deveria ser o primeiro de muitas medidas rumo a um sistema financeiro mundial mais seguro, mais justo e mais bem fiscalizado e um bastião contra uma reedição da crise de 2007-2008.

Dezoito meses depois, esse avanço não parece tão claro. Embora todos concordem que os mercados devam ser mais fáceis de monitorar e que nenhum banco possa ser tido como "grande demais para quebrar", muitos países estão apresentando propostas contraditórias e excludentes para esses dois quesitos. Mesmo com relação à capitalização dos bancos, a grande história de sucesso, a unidade está se esgotando, num momento em que a União Europeia (UE), o Reino Unido e as autoridades americanas se acusam reciprocamente de diluir ou adiar as medidas mais rígidas.

"A coesão mundial chama a atenção atualmente por sua total ausência", diz Simon Gleeson, um dos sócios, para a área reguladora, do escritório britânico de advocacia Clifford Chance. "O que isso demonstra é que precisamos de um maior grau de coordenação internacional do que o que temos efetivamente."

A desarmonia gera confusão e altos custos para os bancos, que estão gastando bilhões de dólares para se preparar para cumprir as várias normas, e temem que não conseguirão concorrer com pares de outros países normatizados por uma regulamentação mais leve. "É um grande pesadelo. Os reguladores absolutamente não se respeitam entre si. Cada país está cuidando de seus interesses", diz um alto executivo voltado para a área reguladora de um dos maiores bancos do mundo, corroborando um sentimento manifestado por seus pares de cinco outras instituições.

Pior do que as complicações que atingem o próprio setor são os custos potenciais envolvidos para o mundo como um todo. A reavaliação regulatória mundial pretendia evitar uma repetição da crise financeira, responsável por um golpe tão grande sobre o crescimento da economia que muitos países ainda enfrentam dificuldades para se recuperar. Mas, com o processo supostamente coordenado dando sinais de resvalar para a seara do meramente protocolar, do protecionismo e das batalhas judiciais interfronteiras, a colcha de retalhos representada pelas normas vai dificultar a propagação pelo mundo inteiro que associaria os compradores aos vendedores e os tomadores aos poupadores. Isso, por sua vez, poderá reduzir a concorrência e elevar o custo de tudo, desde contratos de crédito imobiliário residencial até os complexos contratos de derivativos que os governos e empresas empregam para se proteger das altas dos preços.

Autoridades de Tóquio, Londres e Ottawa já estão advertindo que seus mercados de bônus soberanos estão sendo ameaçados por uma norma dos Estados Unidos destinada a reduzir o risco dos bancos, e as seguradoras britânicas avisam que uma nova regulamentação da UE pode fazê-las mudar de mala e cuia para a Ásia.

E, o que é pior, a meta suprema de aumentar a estabilidade financeira pode também ficar fora de alcance. A cooperação é decisiva para domar os problemas causados pelas operações dos grandes bancos multinacionais e pela arbitragem dos órgãos reguladores, por meio dos quais os riscos simplesmente transpõem as fronteiras nacionais e alcançam as áreas menos regulamentadas do sistema financeiro. Pouco antes da crise financeira, os fundos de hedge, os fundos de empréstimos de curto prazo e os veículos de finalidades especiais conhecidos em conjunto como "operações bancárias sombra" somavam US$ 50 trilhões em ativos, 25% de todo o setor financeiro, e os problemas vigentes em parte do setor sombra contribuíram para deteriorar a situação de bancos tradicionais. Pesquisas recentes sugerem que o setor sombra voltou a seus níveis pré-crise.

Tóquio, Londres e Ottawa advertem que seus mercados de bônus estão ameaçados por norma dos EUA

Alguns órgãos reguladores e políticos dizem que o foco na desarmonia leva a desconsiderar o panorama mais geral. Desde 2009, os líderes do Grupo dos 20 países industrializados e em desenvolvimento (G-20) se reúnem anualmente e reafirmam seu compromisso para com uma série de reformas financeiras. A maioria dos membros apresentou propostas destinadas a vincular a remuneração dos dirigentes dos bancos ao risco e a obrigar os derivativos privados - apostas entre dois lados em torno das variações dos juros e das taxas de câmbio ou do preço das commodities e dos valores mobiliários - a entrar em "câmaras de compensação", onde os riscos podem ser contrabalançados e mais facilmente monitorados.

O Conselho de Estabilidade Financeira (FSB, pelas iniciais em inglês), um órgão regulador mundial encarregado de implementar a agenda de reformas do G-20, afetou, além disso, 29 "instituições financeiras mundiais sistemicamente importantes com exigências adicionais de capital e determinou que elas lavrassem "testamentos em vida" que detalham o que poderia ser feito para estabilizá-las ou fechá-las no caso de uma crise. O Comitê de Basileia para supervisão bancária, que opera em estreita colaboração com o FSB, também vem defendendo eloquentemente seus planos de fazer os membros cumprirem suas promessas quanto à capitalização e à liquidez dos bancos ao humilhar os que não as honram. Ainda agora, ela está debruçada sobre relatórios sobre a maneira pela qual as normas estão sendo aplicadas nos EUA, na UE e no Japão. "As forças corrosivas das memórias curtas e da indulgência em termos de supervisão.... precisam ser evitadas", disse Stefan Ingves, seu presidente.

Mas o setor argumenta que o acordo amplo em torno de princípios e da necessidade de fiscalizar seu cumprimento está sendo solapado pelas leis e regulações que estão sendo propostas pelos países-membros do G-20.

Consideremos a compensação central dos derivativos, o processo de submeter esses contratos a uma instituição que faz a compensação entre eles e obriga cada uma das partes a dar garantias a fim de cobrir potenciais prejuízos. Cingapura e Hong Kong disseram que querem compensação obrigatória de derivativos envolvendo uma das partes sediadas em sua jurisdição até o fim do ano. Isso instaura um conflito com medidas semelhantes em curso nos EUA e na UE.

Se as localidades não desenvolverem uma maneira de reconhecer as câmaras de compensação recíprocas, dois centros poderão reivindicar o mesmo derivativo, apesar de ele poder ser compensado apenas uma vez. "A tendência é que os países ou a UE sancionem legislação que, diante disso, implemente os compromissos do G-20, mas que, na prática, seja descoordenada com outros países", diz o advogado Michael McKee, da DLA Piper. "Em vista disso, o resultado não são tanto objetivos conflitantes, e sim soluções conflitantes."

No que se refere aos testamentos em vida, ou "planos de recuperação e dissolução", uma recente pesquisa da Ernst & Young detectou que grandes bancos japoneses mal tinham começado seu planejamento. A UE reconheceu este mês que as propostas sobre "administração da crise e dissolução dos bancos - prometidas desde o terceiro trimestre do ano passado - precisavam de mais elaboração.

No ano passado houve 14.215 anúncios regulatórios mundiais, 60 por dia útil, aponta pesquisa

Bancos dos Estados Unidos e do Reino Unido avançaram mais, mas suas experiências não são um fator de maior tranquilidade. Um alto executivo diz que sua instituição mundial foi advertida, no terceiro trimestre do ano passado, por órgãos reguladores americanos a não compartilhar a versão preliminar de seu plano com o Reino Unido, o que sugere falta de respeito e de confiança. Outros dizem que se defrontaram com instruções conflitantes originárias dos vários países onde têm grande presença. "Há um descompasso entre os corajosos anúncios do G-20 de soluções mundiais e as confusas práticas das autoridades nacionais, que lutam para proteger seus próprios interesses nacionais", diz Jon Pain, ex-regulador britânico que atualmente trabalha na empresa de auditoria KPMG.

Mesmo os requisitos básicos da demonstração de resultados se tornaram um problema, num momento em que autoridades reguladoras do mundo inteiro pedem mais dados para ajudá-las a identificar e entender ameaças crescentes à estabilidade financeira. Uma administradora de investimentos da Ásia que tem clientes tanto nos EUA quanto na UE pode ter de notificar os mesmos dados decompostos e analisados de diferentes formas para pelo menos três reguladores. "Para nós, a fragmentação é um desastre", diz um executivo de banco encarregado de fazer lobby. "O acordo do G-20 é uma ideia brilhante, mas não tem força suficiente."

O problema transcende as diferentes interpretações desse pacto. As autoridades encarregadas da implantação das reformas dos EUA, da UE e do Reino Unido estão levando à frente reformas individuais que vão afetar grupos sediados em outros países, causando mal-estar nas nações que optaram por não introduzir mudanças semelhantes. Os Estados Unidos são vistos como o principal infrator nesse sentido, porque sua lei federal de reforma Dodd-Frank, de mais de 2 mil páginas, reúne uma enorme quantidade de normas que afetam não apenas os bancos americanos atuantes nos EUA como também os braços externos dos bancos americanos e os braços americanos dos bancos estrangeiros. Japão, Canadá e Reino Unido estão especialmente furiosos com a "norma Volcker", que impede que os bancos façam apostas com seu próprio dinheiro, porque temem que ela possa comprometer a liquidez nos mercados não americanos de bônus governamentais. A UE também intensificou as críticas. "Não é aceitável que as normas americanas tenham um efeito tão grande sobre outros países e sobre mercados de capitais externos, sem qualquer coordenação internacional", disse Michel Barnier, o membro da Comissão Europeia para mercado interno e serviços.

Do outro lado do Atlântico, muitos temem que as novas normas da UE para administradores de fundos de hedge venham, na prática, a excluir grupos alheios ao bloco. Os órgãos reguladores do setor de seguros da UE, por seu lado, insistem que suas novas exigências, mais rígidas, de gerenciamento de capital e de risco, conhecidas como Solvência II, precisam ser cumpridas por divisões americanas de seguradoras da UE, uma medida que o setor insiste em dizer que vai torná-lo pouco competitivo. Pelo menos um grupo britânico, o Prudential, está considerando a possibilidade de mudar sua sede de país para fugir aos requisitos mundiais.

Os órgãos reguladores asiáticos, por sua parte, estão despertando para o impacto potencial tanto das normas dos EUA quanto da UE sobre seus mercados, e não se mostram especialmente satisfeitos, dizem advogados e dirigentes de bancos. Os bancos da região evitaram, em grande medida, os piores problemas da crise de 2008, e "estão recebendo como uma grande surpresa o grau de extraterritorialidade dessas regulações", diz Mark Shipman, sócio, lotado em Hong Kong, da Clifford Chance.

Os esforços mundiais para fortalecer a regulamentação também estão abrindo fissuras nas relações dentro da UE. O Reino Unido e a Suécia estão lançando outros países contra o plano da Comissão Europeia de impedir que países-membros individuais sancionem normas mais rígidas que o modelo idealizado para toda a UE. Além disso, a Autoridade Bancária Europeia (EBA, na sigla em inglês), um novo órgão regulador pan-UE, teve seu plano de reconstituir a confiança nos bancos da zona do euro por meio de novas exigências rígidas de capitalização atropelado pelos esforços de França, Alemanha e Espanha no sentido de instaurar mudanças que facilitassem para seus bancos o cumprimento dos procedimentos.

Mesmo quando os países conseguem, efetivamente, trabalhar juntos, esse processo é, muitas vezes, mais penoso do que deveria ser, segundo o setor. A Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados, o novo órgão regulador pan-UE, acaba de conseguir impedir um potencial congelamento dos mercados de crédito ao determinar que os bancos poderão usar as classificações emitidas por agências de risco sediadas nos Estados Unidos, em Hong Kong e em Cingapura para fins regulatórios. A autoridade concluiu que a supervisão das agências de classificação desses países era "tão rigorosa" quanto o processo da UE.

Mas os dirigentes dos bancos dizem que esse acordo, aprovado menos que dois meses antes do prazo final que teria proibido o uso de outras classificações, é muito característico dos esforços de harmonização. "Muitas vezes quase tarde demais, os reguladores vêm com uma solução de compromisso factível... mas você, como empresa, tem de gastar muito tempo, esforço e dinheiro para se preparar para a possibilidade de o resultado final não ser substancial", diz um funcionário de questões regulatórias de um banco global.

Algumas pessoas se perguntam se uma regulamentação mundial uniforme não é simplesmente uma quimera. "O excesso de ambição levará à fragmentação e ao protecionismo", diz Jacqui Hatfield, sócio executivo do escritório de advocacia Reed Smith. "Seria melhor ter como meta um compromisso para com princípios mundiais uniformes de alto nível do que um conjunto de normas harmonizadas quase impossíveis de implementar."

Bancos, corretoras e seguradoras se sentem sufocadas em meio ao amontoado de novas propostas. Não é para menos: no ano passado houve 14.215 anúncios regulatórios mundiais - uma média de 60 por dia útil, segundo a Thomson Reuters. As reformas mais significativas são:

1) Dodd-Frank - levando o nome de seus patrocinadores, a lei de reforma financeira americana de 2010 tem mais de 2 mil páginas. Entre as mudanças mais dignas de nota estão a criação de um departamento nacional de proteção ao consumidor, padrões de capitalização mais rígidos para bancos e nova supervisão para derivativos negociados em balcão, órgãos de classificação de risco e grandes instituições não bancárias que prestam serviços financeiros. Wall Street vem fazendo cerrado lobby por correções e expurgos de artigos.

2) Norma Volcker - uma das partes mais polêmicas da Dodd-Frank, ela impede os bancos de fazer apostas em ativos com recursos próprios e restringe seus investimentos em compras de participações e fundos de hedge. O setor e os governos externos estão exercendo intensivo lobby para diluir as normas de implementação, dizendo que elas vão acabar com a liquidez em mercados fundamentais, como o de bônus governamentais.

3) Emir - essa diretriz preliminar da União Europeia pretende reduzir os riscos decorrentes dos derivativos negociados em balcão - que essencialmente apostam em tudo, desde flutuações da taxa de juros até preços das commodities. A lei, que está próxima da adoção final, obrigará a maior parte desses contratos a ser liquidada em câmaras de compensação, que detêm garantias contra a falência de quaisquer das partes e facilita o acompanhamento dos desdobramentos pelos reguladores.

4) AIFMD - Aprovada em 2010, essa lei da UE fixa exigências de remuneração, de capitalização e outras para os fundos de hedge, fundos de compras de participações e outras gestoras de investimentos alternativos. Tem sido alvo de prolongadas disputas devido às suas cláusulas rígidas de responsabilidade civil por prejuízos nos investimentos e suas complexas normas para administradoras de fundos sediadas fora do bloco de 27 países.

5) Basileia 3 - normas mais severas de capitalização e liquidez do setor bancário aprovadas por um grupo mundial de reguladores instalado na Suíça, serão introduzidas paulatinamente a partir deste momento até 2019. O setor diz que elas comprometerão o crescimento e está exercendo lobby junto às autoridades reguladoras nacionais para que as diluam ou adiem sua implementação.

6) Solvência II - essas normas da UE para o setor de seguros deverão entrar em vigor em 2014, mas o setor argumenta que os padrões, que fixam exigências mais severas de administração de risco e requisitos mais elevados de capitalização, ameaçam aumentar os custos e tornar as seguradoras europeias pouco competitivas ao atuar em outros países.

7) Extraterritorialidade - Essa palavra difícil de pronunciar é uma maneira rápida de descrever o hábito desagradável - para o restante do mundo - dos EUA e da UE de aplicar suas leis mundialmente a qualquer grupo que opera em seu território. Assim, as subsidiárias americanas de seguradoras da UE têm de cumprir a Solvência II, e os braços asiáticos dos bancos americanos precisam respeitar a norma Volcker mesmo que a autoridade reguladora do país em questão não as obrigue a isso.