Título: Exposição cambial da dívida pública e política monetária
Autor: Bassoli, Alexandre
Fonte: Valor Econômico, 04/08/2006, Opinião, p. A14

A dívida líquida do setor público seguiu recuando em maio como proporção do PIB, atingindo 50,7% do PIB, ante 51% um mês antes. É uma queda pequena, e de resto o movimento de recuo da dívida nos últimos anos tem se dado a uma velocidade muito inferior àquilo que seria desejável para pavimentar o caminho para a aceleração do crescimento econômico. Quando se compara o Brasil aos países que atingiram o chamado grau de investimento, percebe-se que ainda há diferenças importantes entre nós e eles, sendo as mais evidentes o tamanho da dívida (a relação dívida/PIB média daqueles que detêm a nota mínima de grau de investimento é pouco mais da metade da brasileira) e o crescimento (o PIB per capita brasileiro cresceu em média apenas 0,9% entre 2001 e 2005, contra 3,3% dos que estão na nota mínima de grau de investimento). As marcantes diferenças nesses dois indicadores estão longe de ser independentes: a má qualidade do ajuste fiscal brasileiro e o elevado endividamento do setor público estão na raiz da incapacidade da economia produzir uma aceleração do crescimento em termos sustentados.

Não é de se surpreender, portanto, que muitas análises recentes tenham enfatizado a preocupação com a aceleração do ritmo de crescimento do gasto público neste ano. Esse crescimento precisará necessariamente ser revertido nos próximos anos, sob pena de comprometer a solvência do setor público e condenar o país a perpetuar o baixo crescimento das últimas décadas. Ainda assim, a pequena queda da relação dívida/PIB em maio sintetiza bem a redução da vulnerabilidade da economia brasileira nos últimos anos. A economia mundial viveu um período turbulento em maio, com a perspectiva de novas elevações de juros pelo Fed detonando um movimento de realocação global nas carteiras de investimento. O Brasil obviamente não ficou imune a esta turbulência e, como seria de se esperar num regime de câmbio flutuante, ela se transmitiu primariamente através da taxa de câmbio, que elevou-se de 2,08 R$/US$ no final de abril para 2,37 R$/US$ algumas semanas depois. Num passado não muito distante, flutuações dessa magnitude da taxa de câmbio eram suficientes para produzir fortes oscilações na dívida pública, que tinha significativa participação de títulos de dívida externa e dívida doméstica indexada ao câmbio. Nos piores momentos, em 2002, o percentual de papéis indexados ao câmbio chegava a 55% do total da dívida pública. Não tivesse havido mudanças na sua composição desde então, a depreciação do câmbio vista em maio teria produzido uma elevação da relação dívida/PIB de 51% para algo como 55%.

A experiência nos mostra que movimentos dessa magnitude na dívida pública tendem a amplificar e elevar a persistência da turbulência inicial, pois afetam a percepção dos investidores sobre a solvência do setor público.

A redução da exposição cambial da dívida pública parece fundamental, portanto, para explicar os efeitos limitados da turbulência recente sobre a economia brasileira. Tal redução, obviamente, não foi feita sem custos. O Brasil se defrontou nos últimos anos com um entorno internacional extraordinariamente favorável, no qual se destacavam o mais exuberante quadriênio em termos de crescimento mundial desde o início dos anos 70, abundante liquidez e elevados preços de commodities. Do ponto de vista brasileiro, esse entorno implicou elevação dos influxos de capital e ampliação dos saldos comerciais, ambos gerando forças no sentido de valorizar a taxa de câmbio. Com isto, duas alternativas colocaram-se diante do Banco Central. A primeira seria permitir que a valorização do câmbio se materializasse em sua plenitude, criando condições para a aceleração da queda da inflação e dos juros.

-------------------------------------------------------------------------------- Reduzir exposição cambial da dívida pública parece importante para explicar efeitos limitados recentes na economia brasileira --------------------------------------------------------------------------------

A segunda alternativa seria aproveitar-se do cenário favorável para reduzir a exposição cambial da dívida pública, através da acumulação de reservas, da não rolagem de títulos cambiais ou mesmo através da emissão dos chamados swaps cambiais reversos. Neste caso, a valorização do câmbio seria menor, tornando mais lenta e custosa a redução tanto da inflação como dos juros. Obviamente, esta alternativa envolvia também taxas de crescimento menores durante algum tempo. É evidente que o BC optou pela segunda opção. O esforço dos últimos anos permitiu reduzir a zero a exposição cambial da dívida pública, ao custo, durante algum tempo, de taxas de juros mais altas e crescimento menor. Pagou-se um custo elevado, sem dúvida, mas hoje é tangível que as escolhas feitas tornaram a economia mais sólida para enfrentar uma mudança dos ventos que sopram do hemisfério norte. Enquanto outros países emergentes, como a Turquia, tiveram que reagir elevando fortemente as taxas de juros, as expectativas de inflação no Brasil seguem declinando, ao que tudo indica novos cortes de juros virão, e a economia seguirá crescendo no futuro previsível.

Com a redução da volatilidade dos juros e da inflação, cria-se um ambiente mais favorável para o investimento, e esta é a maior contribuição que a política monetária pode oferecer à aceleração do crescimento.

Um ambiente de maior estabilidade também é positivo por permitir que as discussões de política econômica, antes focadas na superação de sucessivas crises, se desloquem para os determinantes do crescimento de longo prazo. Não por acaso, parece haver uma convergência maior hoje sobre a necessidade de melhorar a qualidade do ajuste fiscal, o que significa concretamente interromper o crescimento contínuo dos gastos públicos como proporção do PIB e torná-los mais eficazes, com políticas sociais mais focalizadas e maior participação de investimentos em infra-estrutura. Essa convergência sem dúvida aumenta as chances de o país enfrentar com êxito esse desafio, que se afigura como o maior condicionante do crescimento econômico nos próximos anos.