Título: A força das multinacionais emergentes
Autor: Engardio, Pete
Fonte: Valor Econômico, 08/08/2006, Empresas, p. B2

Assim como outros moradores das áreas rurais no sul do Mississippi, Jamie Lucenberg, encarou um grande trabalho de limpeza no último outono americano após a passagem do furacão Katrina.

Ele precisava rapidamente de um trator para tirar entulho e árvores de sua fazenda de 9 hectares, a apenas 16 minutos ao norte da devastada Biloxi.

Mas ao invés de comprar um trator americano John Deere ou New Holland, marcas com as quais ele cresceu, Lucenberg escolheu um reluzente Mahindra 5500 vermelho, fabricado pela Mahindra & Mahindra da Índia. "A vida toda estive envolvido com equipamentos agrícolas", diz Lucenberg, que também usou o trator para ganhar um dinheirinho extra limpando residências destruídas ao longo da costa do Golfo do México.

Mas por US$ 27 mil o Mahindra de 54 HP "é de longe o melhor investimento. É mais potente e mais pesado", diz Lucenberg. "Quando você aciona a tração nas quatro rodas, pode carregar 3 mil libras como se fosse nada." O revendedor de Saucier, no Mississippi (com população de 1.300 pessoas), afirma ter vendido 300 Mahindras nos últimos quatro meses.

Surpreso que uma companhia da Índia esteja penetrando no mercado americano, dominado por nomes veneráveis como Deere? Então é hora de prestar atenção em como a globalização deu uma volta completa. Uma nova linhagem de multinacionais ambiciosas está surgindo no cenário mundial, apresentando desafios e oportunidades para os concorrentes globais já estabelecidos.

Esses novos competidores vêm de lugares aparentemente improváveis, nações em desenvolvimento como o Brasil, China, Índia, Rússia e até mesmo o Egito e a África do Sul. Eles estão sacudindo setores inteiros, dos equipamentos agrícolas e refrigeradores, aos aviões e serviços de telecomunicações, e mudando as regras da competição global.

Ao contrário dos conglomerados japoneses e coreanos, que se beneficiaram da proteção e dos grandes lucros em casa, antes de tomarem o mundo de assalto, estas são principalmente companhias que prevaleceram em mercados domésticos brutalmente competitivos, onde as empresas precisam brigar com concorrentes locais e multinacionais ocidentais. Como resultado, esses campeões emergentes precisam obter lucros com níveis de preços não vistos nos Estados Unidos e na Europa.

As fabricantes indianas de medicamentos genéricos, por exemplo, sempre cobram dos clientes em seu mercado doméstico valores ínfimos que podem chegar a 1% ou 2% do que as pessoas pagam nos EUA. Empresas de celulares no norte da África, Brasil e Índia, oferecem serviços telefônicos que custam poucos centavos por minuto. Mesmo assim, essas companhias sempre prosperam nesses ambientes difíceis. A operadora de telefonia celular Orascom, do Egito, consegue margens de 49%; o lucro antes dos impostos da Mahindra cresceu 81% no ano passado.

Algum já são nomes conhecidos. A Lenovo, fabricante de computadores da China, agitou o mercado no ano passado ao comprar, por US$ 11 bilhões, o negócio de PCs da IBM. As fabricantes indianas de softwares Infosys, Tata Consultancy Services e Wipro vêm revolucionando a indústria de serviços tecnológicos, que movimenta US$ 650 bilhões por ano. A SABMiller, fabricante de cerveja de Joanesburgo, está desafiando a liderança da americana Anheuser-Busch em seu próprio mercado.

Essas companhias são apenas a primeira onda. A maior prestadora internacional de serviços de telefonia móvel? Logo ela poderá ser a América Móvil do México, que tem mais de 100 milhões de assinantes latino-americanos e lidera o mais recente ranking da "BusinessWeek" das maiores companhias de tecnologia da informação no mundo. Nunca ouviu falar a Techtronic Industries de Hong Kong? Se você compra furadeiras na Home Depot, você provavelmente conhece algumas das marcas que ela fabrica: Ryobi, Milwaukee e Ridgid.

A brasileira Embraer superou a Bombardier do Canadá como terceira maior fabricante de aviões do mundo e está conquistando pedidos para jatos de médio porte que de outro modo teriam ido para aviões maiores da Airbus e da Boeing. Os líderes ocidentais na área de equipamentos de telecomunicações durante muito tempo olharam para a Huawei Technologies da China como uma simples imitadora de seus produtos. Mas no ano passado, a Huawei conseguiu US$ 8 bilhões em novas encomendas, incluindo contratos com a BT para seu programa de US$ 19 bilhões que vai transformar a rede de telecomunicações britânica. O negócio "provocou arrepios nos fabricantes de equipamentos de telecomunicações", afirma o analista Michael Howard, da consultoria Infonetics Research.

Muitas outras companhias estão usando suas bases no mundo desenvolvido como trampolim para a construção de impérios globais, como a fabricante mexicana de cimento Cemex, a farmacêutica indiana Ranbaxy e a companhia de petróleo russa Lukoil, que possui centenas de postos de gasolina em Nova Jersey e na Pennsylvania. "O surpreendente é o tamanho do progresso conseguido pelas companhias dos mercados emergentes nos últimos anos", diz Harold L. Sirkin, vice-presidente sênior do Boston Consulting Group (BCG), que recentemente publicou um estudo baseado em dados colhidos junto a três mil companhias de 12 nações em desenvolvimento.

O BCG identificou cem multinacionais emergentes que parecem posicionadas para "transformar radicalmente setores e mercados de todo o mundo". As cem tinham receita combinada de US$ 715 bilhões em 2005, com US$ 145 bilhões em lucros operacionais e meio trilhão de dólares em ativos. Elas vêm crescendo a uma taxa anual de 24% nos últimos quatro anos. "Na minha cabeça não há dúvidas de que a América Empresarial começou a levar a sério essa ameaça", acrescenta Sirkin.

O que torna essas companhias competidores globais? A principal vantagem que elas têm é o acesso a alguns dos mercados em crescimento mais dinâmicos do mundo e a reservas imensas de recursos de baixos custos, sejam eles trabalhadores na produção, engenheiros, terras, petróleo ou minério de ferro. Mas essas aspirantes a gigantes envolvem muito mais do que custos baixos. As melhores do grupo estão se mostrando tão inovadoras e inteligentemente administradas quanto qualquer outra do ramo, absorvendo de maneira astuta as tendências mundiais de consumo e as tecnologias, além de colocarem produtos no mercado mais rapidamente que seus concorrentes. A Techtronic, por exemplo, foi a primeira a vender ferramentas pesadas sem fio que funcionam com baterias leves de lítio.

O atraente jato EMB 190 da Embraer, para 118 passageiros, está levando a aviação comercial de menor porte a um novo nível, com um design da fuselagem que oferece um espaço para as pernas e para a bagagem de mão encontrado apenas em aviões muito maiores. A globalização e a internet estão conduzindo esta "mudança sísmica" na paisagem competitiva, afirma o guru da administração Ram Charan. Como elas podem ter os mesmos talentos administrativos, informações e capital das companhias ocidentais, "qualquer uma de qualquer parte, que estiver decidida, pode de fato reestruturar um setor", afirma. "Não há dúvidas de que o jogo agora é global."

É claro que as companhias americanas já enfrentaram ondas de novos concorrentes antes. Nos anos 1960 e 1970 houve a ascensão dos grupos industriais da Europa Ocidental, como a Unilever, Philips, Siemens e Volkswagen. Depois foi a vez das gigantes japonesas como a Sony e a Toyota, seguido das potências coreanas, como a Hyundai e a Samsung, e os conglomerados eletrônicos de Taiwan, na década de 1990. A cada vez, diretores-presidentes eram pegos desprevenidos. As melhores companhias americanas se adaptaram e ficaram mais fortes. Ainda assim, esse novo grupo de companhias que está mudando as regras do jogo é diferente de muitas maneiras.

Para começar, os novos concorrentes estão surgindo de muitas nações de uma só vez, e empregando uma infinidade de estratégias. Eles também estão chegando de países que, embora estejam crescendo rapidamente, ainda são relativamente pobres. A Alemanha e o Japão eram potências industriais antes da Segunda Guerra Mundial e aproveitaram isso para reemergirem como pesos-pesados globais. Por outro lado, China e Índia começaram a sair da pobreza extrema apenas nas últimas décadas. A renda per capita da China ainda é de apenas US$ 1.300. Na Índia ela é de US$ 620. Isso soa como uma desvantagem enorme para as empresas desses países: implica em clientes de baixa renda, capital escasso e tecnologias inferiores. Também significa lutar contra regras arcaicas, corrupção e infra-estrutura deficiente.

No entanto, isso pode ser uma fonte de energia vital. Essas companhias aprenderam a fazer dinheiro desenvolvendo produtos e serviços confiáveis e fáceis de serem usados, a preços bem baixos. E essas habilidades as estão equipando bem para que elas operem em outras partes do Terceiro Mundo. Companhias de telecomunicações como a Orascom e a Bharti Telecom da Índia, por exemplo, conseguem margens altas mesmo vendendo serviços de telefonia móvel em alguns países por US$ 0,02 a US$ 0,03 o minuto, enquanto a América Móvil foi pioneira no uso do serviço "pague-o-que-usar", que permite às massas pagar US$ 4,50 por um cartão pré-pago.

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A Índia tem alguns dos preços farmacêuticos mais baixos do mundo. O país possui 101 marcas de genérico ciprofloxanin, usado no tratamento de infecções bacterianas, como a pneumonia e o antrax. Eles custam em média US$ 0,63 por dez tabletes de 500 mg cada. Nos Estados Unidos o genérico custa US$ 51, segundo a Ranbaxy Laboratories. "Aprendendo a competir nesse ambiente, nós ganhamos uma força no desenvolvimento e no marketing que nos ajuda em todas as partes do mundo", diz o diretor-presidente da Ranbaxy, Malvinder Mohan Singh.

O fim dos anos 1990 mostrou ser um período de grandes oportunidades para essas empresas. Na esteira das crises financeiras na Ásia, América Latina e Rússia, muitas companhias e bancos ocidentais se retiraram da maioria das nações em desenvolvimento. Concorrentes locais bem administrados compraram barato ativos dessas companhias e saíram em busca de oportunidades em lugares como a Nigéria, Paquistão e Colômbia. O Banco Mundial (Bird) estima que de 1995 a 2003 os investimentos corporativos de nações em desenvolvimento para outras mais que triplicaram, para US$ 47 bilhões por ano. Desde então, esse volume provavelmente já se aproximou dos US$ 60 bilhões.

Isso deixa as novas multinacionais numa posição forte. O Bird projeta que ao longo da próxima década a parcela das nações em desenvolvimento no PIB mundial deverá crescer de um quinto para um terço. Nas próximas duas décadas, prevê o Goldman Sachs, China, Índia, Brasil e Rússia acrescentarão às suas populações cerca de 225 milhões de consumidores com renda de US$ 15 mil por ano. Isso é mais do que a população combinada da Alemanha e do Japão. A Pyramid Research de Massachusetts, estima que dos 1,2 bilhão de novos assinantes de celulares existentes no mundo até 2010, 86% estarão nos países em desenvolvimento. A consultoria econômica Keystone India, de Chicago, afirma que os mercados emergentes serão responsáveis por 69% de todas as vendas de automóveis novos até 2030, em comparação aos atuais 26%.

É claro que onde as multinacionais estabelecidas escolhem lutar, elas ainda detêm grandes vantagens sobre as demais. Citibank, GE, Honda, HSBC, Motorola, Nokia e Philips são mestres no uso de mão-de-obra barata em lugares que vão de Bangalore a São Paulo. Poucas companhias de países em desenvolvimento possuem tal agilidade administrativa.

Isso se aplica particularmente à China, onde fabricantes promissores de produtos eletrônicos de consumo, como a Bird, a Konka e a TCL, vêm sofrendo percalços por causa do excesso de capacidade de produção em casa e de aquisições fora do país administradas de maneira deficiente. "Todo mundo vê as empresas chinesas como uma ameaça, mas na verdade elas enfrentam muitas dificuldades ao se globalizarem", afirma Zhang Xuebin, diretor-presidente da fabricante de televisores Skyworth Digital, que fatura US$ 1,5 bilhão.

As melhores multinacionais emergentes, porém, vêm ganhando muito dinheiro, construindo redes globais de pesquisa e desenvolvimento e formando administrações de primeira linha. Dá para ter uma idéia até onde essas empresas chegaram, dando uma volta pelas instalações da Embraer em São José dos Campos, que são do tamanho de 55 campos de futebol.

No pavimento de um hangar, dezenas de trabalhadores em uniformes impecáveis dão os toques finais em três luxuosos jatinhos Legacy 600 para 16 passageiros. Em uma sala de aulas acima da linha de montagem, 30 engenheiros inscritos no programa de graduação aeroespacial da companhia fazem um ajuste fino numa apresentação, sobre um hipotético novo modelo que eles projetaram após exaustivas pesquisas de mercado e estudos de viabilidade de custos.

Outros concorrentes emergentes estão usando o acesso que têm a grandes grupos de engenheiros locais de baixos custos, e a experiência adquirida nos países desenvolvidos, para diminuir a diferença que elas têm em relação às grandes multinacionais ocidentais. Apenas três anos atrás, a Huawei era conhecida nos Estados Unidos principalmente como a companhia que a Cisco Systems pegou copiando seus produtos. Mas a Huawei, investiu US$ 558 milhões em pesquisa e desenvolvimento em 2005, emprega sete mil engenheiros em seu campus de Shenzhen e está ganhando respeito em nível mundial. Em 2005 realizou 57% de suas vendas fora da China e tem uma participação de mercado de 15% na Ásia e de 9% na América Latina, aproximando-se rapidamente da liderança da Cisco nessas regiões. A Huawei é líder mundial no mercado de equipamentos de serviços de voz sobre o protocolo da internet (VoIP).

Além de praticar preços de 20% a 50% menores que os de seus concorrentes ocidentais, a Huawei é adepta do design de equipamentos apropriados para os países em desenvolvimento.

Muitas companhias indianas também chegaram à posição de lançar um assalto aos Estados Unidos depois de crescerem às margens da economia global. A Ranbaxy pode estar apenas no 14º lugar no mercado de medicamentos genéricos dos EUA, que movimenta US$ 28 bilhões. Mas ela é líder em países como a Nigéria e o Brasil. Ela conseguiu formar um bom conceito sendo uma das maiores fornecedoras de medicamentos genéricos para tratamentos contra a AIDS que custam US$ 1 por dia, para a África e espera ter seu próprio medicamento contra a malária até 2008. Ela também comprou pequenos fabricantes de genéricos na Bélgica, Itália e Romênia.

O diretor-presidente Singh lembra que quando a Ranbaxy começou a comercializar seus medicamentos na Europa, sua equipe de vendas sempre ficava horas e horas esperando até que gerentes de compras céticos se dispusessem a ouvi-los. Hoje, a Ranbaxy é um dos maiores fornecedores em grande parte da Europa, e 80% de suas receitas de US$ 1,2 bilhão são obtidas fora da Índia. Ela possui funcionários em 49 países, fábricas em sete e uma equipe de pesquisa e desenvolvimento de 1.100 pessoas em suas instalações nos arredores de Nova Déli.

A Ranbaxy acredita que a base que ela tem em pesquisa e desenvolvimento lhe possibilitará ficar entre as cinco maiores dos Estados Unidos até 2012, e ser a número um em termos globais, superando a Teva Pharmaceutical Industries de Israel. Ela possui 58 medicamentos genéricos à espera de aprovação pela Food & Drug Administration dos EUA, incluindo uma versão do medicamento de combate ao colesterol Lipitor. A fila de medicamentos à espera para serem lançados pela Ranbaxy é a segunda maior da indústria dos medicamentos genéricos.

Como as multinacionais ocidentais poderão responder a isso? O primeiro passo é começar a respeitar a nova concorrência. Esta é a atitude que David C. Everitt, presidente da divisão agrícola da John Deere, que fatura anualmente US$ 10,5 bilhões, está tomando em relação à Mahindra. Everitt reconhece que a concorrente indiana poderá, algum dia, superar a Deere em vendas unitárias mundiais. A Mahindra domina o mercado indiano, que é maior que o dos EUA, e é forte no segmento de tratores pequenos, que responde por dois terços de suas vendas nos EUA.

Mas a Deere está se movimentando, reforçando a área de pesquisa e desenvolvimento em tratores mais sofisticados para grandes fazendas e ampliando a própria produção na Índia e em outros países. "Não temos medo da concorrência", diz Everitt. "Ela nos ajuda a melhorar."

Outra estratégia é se recusar a ceder terreno, seja em casa ou no exterior. No ano passado, a Whirlpool pagou US$ 2,8 bilhões pela Maytag. Ela queria manter a Maytag longe do alcance da Haier da China, que está investindo nos EUA e havia feito uma proposta pela empresa. Enquanto isso, a Cisco está mantendo a pressão na China, o mercado doméstico da Huawei. A Cisco continua conseguindo grandes encomendas da parte de corporações chinesas, investiu US$ 650 milhões em companhias chinesas de tecnologia iniciantes, e firmou uma parceria com a rival local da Huawei, a ZTE.

Sempre há a estratégia de se unir aos novos desafiantes. A Nortel e a 3Com formaram associações nas áreas de equipamentos de telecomunicações e design com a Huawei. E a Navistar International possui uma joint venture com a Mahindra para fabricar caminhões e ônibus para exportação.

Não importa como as grandes companhias vão responder, já se foi o tempo em que elas podiam se dar ao luxo de esperar que um mercado emergente amadurecesse para então contar com suas habilidades para atropelar os concorrentes locais pouco sofisticados. Seja a escolha o confronto ou a colaboração, as novas multinacionais deverão mudar as regras em um setor após o outro. (Com Michael Arndt, em Chicago, e Geri Smith, em São José dos Campos) (Tradução de Mário Zamarian)