Título: Melhor é conviver com o câmbio flutuante
Autor: Amadeo, Edward
Fonte: Valor Econômico, 09/08/2006, Opinião, p. A11

Há um certo desconforto com a apreciação do câmbio no Brasil, vista como responsável pelo desestímulo ao investimento em setores cuja competitividade diminuiu. Para alguns, o câmbio depreciado estimula os setores exportadores, que são dinâmicos e geram bons empregos. O problema com essa visão é fazer de menos dos efeitos negativos de depreciar o câmbio - custo fiscal do acúmulo de reservas, inflação, redução do salário real e desestímulo a setores voltados para a demanda doméstica.

Como escolher a taxa de câmbio que leva em conta todos esses efeitos? Em nome de que setores econômicos e sociais se escolhe a configuração ideal de efeitos? E de onde vêm as evidências de que a taxa de câmbio real (que é a que conta para o argumento a favor do câmbio depreciado) pode ser fixada uma vez escolhida a taxa nominal? Essas são perguntas suficientemente difíceis de responder antes de propor a fixação da taxa de câmbio. Mas mesmo abstraindo delas, há outras, mais técnicas e operacionais, que devem ser levadas em conta.

Por exemplo, sob que condições um país pode controlar a taxa de câmbio sem que os efeitos sobre a inflação e as contas públicas sejam muito negativos? A primeira é ter uma baixa relação entre dívida pública e PIB para que o acúmulo de reservas não implique risco fiscal elevado - seja pelo custo da esterilização das reservas, seja pelo de uma eventual apreciação da moeda. A segunda, ter políticas fiscal e monetária eficazes para controlar a demanda agregada doméstica de modo a evitar que a inflação corroa a taxa de câmbio nominal, principalmente se a idéia é começar com uma depreciação. O Brasil não conta com essas condições.

Que não se pode contar muito com a política fiscal no Brasil, é bem conhecido. A crescente rigidez dos gastos reduz a capacidade do governo de usar a política fiscal para modular a demanda agregada. A política monetária tampouco é eficaz, o que significa dizer que a elevação da taxa de juros requerida para conter o aumento da inflação é maior que em outras economias. Por que?

Há dois conjuntos de motivos para que a política monetária seja pouco eficaz, e portanto, muito custosa. Primeiro, a relação entre crédito e PIB e a proporção de títulos da dívida com juros pré-fixados são baixas, o que requer elevação maior que em outros países dos juros para promover uma dada redução da demanda agregada. Segundo, devido à legislação trabalhista e à estrutura oligopolizada de vários mercados, salários e preços são muito rígidos à baixa, o que também reduz a eficácia da política monetária, elevando seu custo medido pela perda de PIB requerida para atingir a meta de inflação. Pelos dois conjuntos de motivos, uma política deliberada de depreciação do câmbio, ou simplesmente administração da taxa, implicaria juros mais elevados do que temos hoje.

-------------------------------------------------------------------------------- Para promover a desinflação, juros têm que ser elevados e a taxa de câmbio mais apreciada que em uma economia aberta e com mercados contestáveis --------------------------------------------------------------------------------

E por que há tamanha rigidez de preços no Brasil? Em parte porque o acesso ao crédito e ao mercado de capitais das pequenas e médias empresas é muito restrito, o que diminui a competição com as grandes empresas. Em parte porque os instrumentos de aumento da concorrência são frágeis. Em particular, a concorrência é baixa porque a economia brasileira é muito fechada. Doha fracassou, a Alca é abominada, não temos acordos de livre comércio e o Mercosul é uma fábrica de ex-tarifários.

O México promoveu a desinflação com custo menor que o Brasil devido ao Nafta. Em alguns anos, a taxa de inflação no México convergiu para a economia dos EUA depois da integração dos mercados. No Brasil, não só a estrutura tarifária é caótica - o que significa que o sistema de proteção efetiva é muito heterogêneo entre os setores - como a tarifa média é muito elevada e a burocracia para importar é muito complexa. Por isso, a diferença entre os preços domésticos e os preços internacionais é elevada e aumenta quando a taxa de câmbio aprecia.

Ou seja, a política microeconômica - em particular, a política de comércio exterior - dificulta muito a política monetária. Para promover a desinflação no Brasil, os juros têm que ser mais elevados e a taxa de câmbio mais apreciada que em uma economia mais aberta e com mercados mais contestáveis.

Ainda assim, houve um bem-sucedido processo de desinflação no Brasil graças aos presidentes FHC e Lula, que deram independência à autoridade monetária e à convicção e capacidade técnica dos dirigentes e funcionários do Banco Central. Hoje, a taxa de inflação no país convergiu para a meta com várias vantagens. Primeiro, a desinflação foi um elemento-chave para o sucesso da política de recuperação dos salários e as políticas de redistribuição do governo. Segundo, reduziu a volatilidade das taxas de câmbio, inflação e juros, o que contribui para maior previsibilidade, permitindo o alongamento dos prazos dos créditos ao setor privado e público.

O que vem acontecendo com o Brasil nesses últimos anos é parecido com o que se convencionou chamar de "grande moderação" nos EUA, no período Volker/Greenspan. A redução da volatilidade da inflação produzirá menor volatilidade do PIB e da renda, que é um fator importante para reduzir o custo do capital. Se essa história for verdade, a sua conseqüência será o crescimento de empresas, pequenas e médias, que jamais tiveram acesso ao crédito e ao mercado de capitais. Com isso, crescerá o investimento e a concorrência, facilitando a política monetária e produzindo mais crescimento da economia.

O aprofundamento dos mercados de crédito e capitais tem outra vantagem. Segundo um estudo recente ("Exchange rate volatility and productivity growth: the role of financial development" de P. Aghion, P. Bacchetta, R. Ranciere e K. Rogoff), a flexibilidade do câmbio real só prejudica o crescimento em economias em que esses mercados são pouco desenvolvidos. Isso porque as empresas conseguem suavizar os efeitos de variações no câmbio usando o mercado de crédito. A essa altura, uma política ativa de depreciação seria uma aventura arriscada, que poderia botar a perder o que vem sendo conquistado com sucesso e dificuldade. Por sua vez, a forma de melhor conviver com variações do câmbio é fortalecendo a política fiscal, abrindo a economia, preservando a estabilidade e aprofundando o mercado de capitais.