Título: Brasil ficou para trás na construção de um mercado de títulos
Autor: Ribeiro, Alex
Fonte: Valor Econômico, 15/08/2006, Finanças, p. C4

Especialista em globalização financeira, o professor Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia, Berkeley, acaba de concluir um amplo estudo que mostra por que os países da América Latina, incluindo o Brasil, estão bem atrás das economias asiáticas na tarefa de construir mercados locais de títulos. Em geral, as grandes empresas latino-americanas preferem captar nos mercados mais desenvolvidos, em que encontram custos mais baixos de financiamento. Quem sai perdendo são as médias empresas, que não são grandes o suficiente para captar no exterior e não encontram mercados locais para levantar capital.

A explicação mais óbvia para esse quadro seria a alta taxa de poupança na Ásia. Mas há outros fatores tão ou mais importantes, entre eles o fraco ambiente de proteção dos investidores e dos credores na América Latina comparativamente àquela região. Na entrevista que segue, Eichengreen diz que, no caso do Brasil, as instituições deveriam ser fortalecidas para convencer as grandes empresas a captar localmente.

Para ele, os bancos de desenvolvimento são no Brasil uma alternativa de financiamento que atrapalha o desenvolvimento do mercado de títulos. "Minha visão, de um economista baseado nos Estados Unidos, é que isso deve ser reduzido."

Eichengreen elogia a iniciativa do governo de isentar os investimentos estrangeiros em títulos públicos, mas acha que a medida deveria ser ampliada para os títulos privados. Para ele, esses fluxos de capitais não tem efeito desestabilizador, e os "hedge funds" não podem ser responsabilizados pelo recente período de volatilidade no mercado financeiro brasileiro. "Freqüentemente são os investidores domésticos que estão tentando sair."

O principal achado do estudo - feito conjuntamente om dois economistas do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Eduardo Borensztein e Ugo Panizza - é que não se desenvolve um mercado local de títulos do dia para a noite. Políticas públicas, como abertura da economia, estabilidade econômica e proteção dos investidores, em geral só explicam cerca de um quarto do estágio de desenvolvimento de um mercado. Fatores como tamanho da economia, PIB per capita e estágio de desenvolvimento financeiro têm um papel muito mais importante.

Na semana passada o economista esteve no Brasil, convidado a proferir conferência no "Seminário Anual do Banco Central".

A última vez em que o economista havia estado no Brasil foi em 2002, quando o país viveu uma crise ligada a eleições presidenciais. "O Brasil talvez esteja na mesma direção do México, e mostra que pode ter uma eleição sem crise."

Valor: Por que desenvolver um mercado local de títulos privados, se as empresas podem se financiar mais barato no exterior?

Barry Eichengreen: Questão semelhante está sendo colocada hoje na Ásia, e eles estão fazendo um esforço ainda maior para desenvolver mercados locais de títulos. Os mercados globais estão interessados em grandes empresas, com reputação internacional. Para médias empresas captarem, é necessário que haja mercados locais, que saibam como conseguir informações e perspectivas sobre elas. Conhecimento local é gerado localmente.

Valor: Em que estágio está o mercado latino-americano de títulos privados comparativamente ao asiático?

Eichengreen: O mercado de títulos na Ásia é maior do que o da América Latina, especialmente o de títulos privados. Mas o mercado latino-americano tende a ser mais líquido, o giro é maior. Os mercados asiáticos são dominados por investidores mais velhos, fundos de pensão, que compram os títulos e os mantêm em carteira. Isso torna possível para as empresas asiáticas levantar fundos por meio de venda de títulos. Mas o mercado de títulos também é uma fonte de informações, emite sinais. Quando o mercado sobe ou desce, isso diz algo sobre políticas econômicas, sobre o que os investidores pensam que vai acontecer no futuro.

Valor: O mercado de títulos na Ásia seria maior por causa do maior nível de poupança?

Eichengreen: Essa é uma vantagem que os países asiáticos têm. Eles também tendem a ir melhor em termos de proteção dos investidores, dos diretos dos credores, cumprimento de contratos. O detentor de um título se preocupa com o que vai acontecer em caso de não pagamento, se os colaterais podem ser usados. Esse tipo de coisa é mais fácil na Ásia. Quando necessário, esses procedimentos são mais fáceis, mais rápidos, menos onerosos, mais previsíveis. Para desenvolver os mercados de títulos na América Latina e no Brasil, esse tipo de reforma precisa ser prioridade.

Valor: Existe algum fator cultural por trás desse baixo nível de proteção aos investidores no Brasil?

Eichengreen: A Ásia nem sempre teve sempre proteção para investidores. Mas depois da crise financeira no fim dos anos 1990, que teve seu centro no sistema bancário, eles concluíram que ter um mercado de títulos maior era realmente importante, que precisava ser uma prioridade na política financeira. Então eles têm feito muito nos últimos anos.

Valor: Mas o Brasil não tem feito também um grande esforço para aumentar os direitos e garantias dos credores, como a aprovação de uma nova lei de falências?

Eichengreen: Na média a América Latina fica atrás da Ásia em termos de custo de processos de falência, em termos do período em que um caso leva para ser resolvidos no Judiciário. A América Latina fica atrás da Ásia no quesito qualidade da contabilidade, e no número de padrões internacionais de contabilidade que a companhia normalmente deve obedecer. A mensagem é que você não consegue desenvolver mercados de títulos do dia para a noite. Esse é um longo e duro processo. Mas uma das coisas que é possível fazer para andar um pouco mais rápido nessa direção é enfrentar esses temas institucionais. Reformar a lei de falências é o caminho certo a seguir. Ou a criação de sistemas tributários que são mais favoráveis para investidores estrangeiros, para estimular sua participação. Não entendo por que essas reformas terminaram nos títulos públicos. Seria adequado estender para títulos privados. E acho que isso deve ocorrer o mais rápido possível.

Valor: Mas em maio e junho tivemos uma grande volatilidade associada a esses investimentos, que ganharam um sistema tributário mais favorável, com isenção para títulos públicos. Estrangeiros tentaram fechar posições e não encontraram liquidez. Seria uma boa idéia atrair mais investidores estrangeiros ao mercado?

Eichengreen: Esse tipo de problema desaparece na medida em que o mercado se desenvolve, quando investidores estrangeiros não estão limitados a apenas um estreito segmento do mercado. Se você observar o México, ou países asiáticos, onde investidores estrangeiros são importantes, eles detêm uma variedade de títulos domésticos. Esse problema de liquidez ocorre quando todos estão felizes e compram o mesmo título, e tentam se desfazer desse mesmo título quando estão insatisfeitos. Estudos acadêmicos mostram que investidores estrangeiros são sempre uma força estabilizadora, e quando há volatilidade não são os investidores estrangeiros que estão fugindo o tempo todo. Freqüentemente são os investidores domésticos que estão tentando sair.

Valor: Mas há indicações que na experiência recente entraram sobretudo recursos de "hedge funds", que são os primeiros a entrar e os primeiros a sair. Vale à pena incentivar o ingresso desse tipo de investidores por meio de isenção de tributos?

Eichengreen: Nunca acreditei que os "hedge funds" causam problemas para os mercados emergentes. Existem muitos outros investidores, investidores privados, bancos comerciais, bancos de investimentos, que estão fazendo os mesmas operações. "Hedge funds" são sempre observados. As pessoas acham que eles são "smart money". Então, quando "hedge funds" se movimentam, as outros investidores dizem: "se os 'hedge funds' estão fazendo isso, a gente tem que fazer também". Mercados financeiros agem como manada. "Hedge funds" algumas vezes estão na frente da manada. Mas, na maioria dos mercados que examinei, eles não respondem para maioria das posições, ou pela maioria dos negócios. Existem muitos outros participantes, bancos de investimento tem fundos dedicados a mercados emergentes, investidores individuais estão nesses mercados. Não diria que hedge funds são um problema especial. Dinheiro doméstico também pode sair. Existem muitos episódios históricos em que houve volatilidade, e eram investidores domésticos, e não só estrangeiros.

Valor: O sr. diz em estudo recente que não é fácil desenvolver um mercado de títulos da noite para o dia pois ele depende de fatores sobre os quais o governo não tem muito controle, como o tamanho da economia. Qual é a situação do Brasil quando são observados esses aspectos?

Eichengreen: O Brasil tem a vantagem de ser um país grande. É difícil desenvolver um mercado de títulos no Uruguai porque existem poucos emissores e poucos investidores domésticos. Tamanho não é um problema para o Brasil, mas existem todos esses aspectos como ter um sistema de compensação eficiente, lei de falências, comprimento de contratos. Todos esses fatores levam tempo e vêm com o desenvolvimento econômico. Se você olhar para a história do meu país, os Estados Unidos, levou boa parte de um século para desenvolver um mercado de títulos. A mensagem não é de desespero. Existem coisas que não são possíveis mudar no curto prazo. Leva tempo para desenvolver um mercado financeiro.

Valor: Na Ásia, existem esforços para criar mercados regionais, mas o Brasil parece não estar aproveitando as oportunidades criadas pelo seu peso regional...

Eichengreen: Na Europa o desenvolvimento do mercado de títulos foi estimulado pelo euro. A Europa teve um acanhado mercado de títulos antes de 1999, que, com o advento do euro, repentinamente se desenvolveu para um mercado muito mais líquido. A explicação é que o risco país passou a não ser mais uma questão relevante, e investidores e emissores passaram a poder comprar na Alemanha o antes era comprado na França. Eles podem comprar no lugar que quiser sem se preocupar com problemas de taxa de câmbio. Essa é uma vantagem para a Europa e será sempre um problema para a América Latina, assim como para a Ásia, porque sabemos que nada como o euro vai acontecer na América Latina.

Valor: Por que não?

Eichengreen: O euro é um projeto político, mais do que um projeto econômico. A Europa não quer criar um Estados Unidos da Europa, não quer exatamente criar uma federação, mas eles querem criar um novo ente político.

Valor: Mas e o Mercosul?

Eichengreen: Existe muito debate sobre isso, mas os países da América Latina acreditam que deve haver uma política exterior comum? Não acreditam agora e provavelmente não acreditarão durante nossa geração. Na Europa, eles tiveram filósofos que acreditavam que deveria haver uma unidade política européia, de forma que Europa não teria que seguir a política externa americana. Não existe o mesmo tipo de desejo de solidariedade política no nível econômico na América Latina. A bandeira e a moeda nacional são os dois poderosos símbolos da soberania nacional.

Valor: Bancos de desenvolvimento controlados pelo governo são uma instituição bastante tradicional no Brasil. Isso atrapalharia o desenvolvimento de um mercado nacional de títulos?

Eichengreen: Esse é um obstáculo adicional para o desenvolvimento de um mercado de títulos de empresas. Existe essa fonte de financiamento fora do mercado. Havia um papel para bancos de desenvolvimento na Europa antes dos mercados financeiros. Minha visão de um economista baseado nos Estados Unidos é que isso deve ser reduzido.

Valor: O mercado de títulos do governo é razoavelmente líquido e desenvolvido no Brasil, mas o de títulos privados é incipiente. Seria por que o governo toma todos os recursos no mercado e deixa pouco para as empresas?

Eichengreen: Uma das coisas que trato no estudo e que outros estudos também abordaram é a seguinte pergunta: se existe um grande mercado de títulos do governo, isso é bom ou ruim para o desenvolvimento do mercado de títulos de empresas? As pessoas argumentam dos dois lados. Algumas pessoas dizem que o mercado de bônus do governo prove uma curva de juros e um "benchmark", e isso é necessário para precificar riscos dos títulos privados. O argumento paralelo é do "crowding out" (quando o governo registra déficits e ocupa toma o crédito disponível na economia, ocupando espaço do setor privado). Se o governo está tomando muito dinheiro emprestado, não sobra muita poupança para financiar o desenvolvimento de um mercado de títulos de empresas. Desse ponto de vista, a situação no Brasil é muito boa. Existe essa herança de um volume expressivo de títulos públicos, mas a política fiscal é mais estável do que foi no passado.

Valor: O sr. diz no seu estudo que há uma relação positiva entre bancos e mercado de bônus, que um ajuda o outro a crescer. O mercado brasileiro é bastante concentrado. É possível dizer que exercem algum poder de mercado que atrapalha o desenvolvimento do mercado de bônus?

Eichengreen: Não tenho informações sobre o mercado brasileiro. Olhando os dados, existem 20 diferentes bancos de investimento que subscrevem emissões. É um grande número, parece um mercado competitivo. Mas suspeito que existe um pequeno número de bancos que responde pela participação dominante do mercado.

Valor: Talvez exerçam algum tipo de poder de mercado?

Eichengreen: Não sei. De um lado existem países como o Chile, com muito bancos envolvidos em apoiar o mercado de títulos, e no outro lado o México, onde existem poucos. O Brasil está no meio.

Valor: No Brasil, sempre que assistimos a uma apreciação da moeda, ressurgem os debates sobre controle de capitais. Essa é hoje uma escolha ao alcance dos países?

Eichengreen: Não acho que seja possível mais. O sistema financeiro doméstico foi liberalizado de uma forma tão significativa que para fazer os controles de capital funcionarem seria necessário regular os mercados financeiros domésticos rapidamente. O fato de desregulamentação do mercado financeiro ter ido tão longe significa que existem várias formas para escapar dos controles de capital. Seria algo caro para implementar se alguém no Brasil tivesse o sério propósito de criar controles de capital. Teria que impor todo o tipo de restrição ao mercado financeiro novamente, o que pessoalmente acho que seria dar um passo atrás.

Valor: Algumas pessoas dizem que o Brasil sofre da doença holandesa, que é a morte de vários setores econômicos devido a uma taxa de câmbio valorizada pela alta de "commodities" exportadas pelo país. O que o sr acha?

Eichengreen: O Brasil está crescendo em torno de 4%, e isso não se parece algo como uma doença holandesa para mim. O Brasil está crescendo. Não há problema de demanda, o problema é mais de capacidade da economia, e para isso precisa de mais investimento.

Valor: O sr. tomou conhecimento das recentes medidas de liberalização do câmbio para exportações?

Eichengreen: Sim, a permissão para que os exportadores deixem 30% de suas receitas fora do país. Minha impressão é que essa medida não vai afetar a taxa de câmbio.

Valor: O risco-país chegou ao seu nível mais baixo na história. Os investidores estariam avaliando incorretamente os riscos?

Eichengreen: Pelo contrário, os investidores estão discriminando melhor entre os países. É notável observar aonde chegaram os "spreads", considerando o que houve nos juros de economias desenvolvidas. Também é notável como na volatilidade recente os investidores souberam separar o Brasil de Turquia, Hungria e África do Sul.

Valor: A visita anterior que o sr. tinha feito ao Brasil foi em 2002, quando o país estava em meio a uma crise. Agora, estamos diante de uma nova eleição. Quais foram as mudanças de lá para cá?

Eichengreen: Entre uma eleição e outra há uma grande diferença. No México, a cada eleição havia uma crise. Isso acabou quando (o ex- presidente Vicente) Fox foi para o poder. O Brasil talvez esteja na mesma direção, e mostra que pode ter uma eleição sem crise.