Título: O risco que corre a CPI é ser tomada pelo revanchismo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/04/2012, Opinião, p. A10

Após marchas e contramarchas, o Congresso finalmente criou, e deve instalar nesta semana, a CPI para investigar os negócios do empresário Carlos Augusto Ramos, mais conhecido, no mundo da contravenção, como Carlinhos Cachoeira.

Trata-se de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito pouco convencional. Em primeiro lugar, porque inverteu a lógica das CPIs, em geral requisitadas pela oposição para apurar desvios de conduta do governo. Neste caso, em particular, o PT e, em certa medida, o governo, por meio de seus ministros petistas, foram, respectivamente, os principais patrocinadores e incentivadores da CPI do Cachoeira, como já é chamada a comissão mista de inquérito.

Inédito e sugestivo, também, é o apoio dos partidos: 90% dos senadores e 75% dos deputados subscreveram o requerimento para a criação de uma CPI que se tornava mais inevitável à medida que conversas telefônicas, gravadas com autorização judicial pela Polícia Federal, exibiam as vísceras do relacionamento de Carlos Cachoeira com o senador Demóstenes Torres, à época no Democratas, um lobo travestido de cordeiro que vestia com naturalidade o figurino imaculado de arauto da moralidade.

As operações da PF também chegaram bastante próximo do governador de Goiás, Marconi Perillo, do PSDB, e colocaram no olho do furacão a empreiteira Delta Construção, uma das principais executoras de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a empresa que mais recebeu recursos do governo federal nos últimos três anos.

Diante de tantas evidências, era natural que o Congresso procurasse exercitar seu poder constitucional de fiscalização. Mas ninguém deve se iludir: o apoio quase unânime dos ilustres parlamentares à CPI deve-se mais à indignação da sociedade com o pouco caso com que a coisa pública vem sendo tratada no país do que ao interesse de expor à luz do sol traficâncias que deixam expostos os principais partidos políticos, governistas e da oposição.

Indignação cuja expressão maior é a Lei da Ficha Limpa, que veio para ficar, conforme deixam claro as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) referentes à sua aplicação nas eleições de 2010, assim como os milhares que protestaram nas ruas contra as candidaturas fichas-sujas.

A história passada das comissões de inquérito, no entanto, não recomenda otimismo. O senso comum, segundo o qual CPI "dá em nada" é mais que uma percepção, trata-se de uma realidade já medida em números pela professora Argelina Ferreira, pesquisadora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

Em dois períodos democráticos, de 1946 a 1964 e de 1988 a 1999, foram propostas a criação de 392 comissões de inquérito. A contabilidade final indica que 303 (77%) foram efetivamente instaladas, 207 concluídas e 89 (23%) nem sequer saíram do papel. Há mesmo casos em que o governo propõe CPIs apenas para se antecipar à oposição e preencher o número limite de comissões de inquérito autorizadas a funcionar no período.

Em geral, os governos conseguiram sucesso na empreitada de manter as CPIs sob controle, segundo a pesquisa de Argelina, especialmente quando utilizaram com eficácia os instrumentos institucionais a seu dispor para superar a dissenção entre os integrantes da coalizão de apoio ao inquilino de plantão no Palácio do Planalto.

Não é preciso ir longe: já no período do PT, o governo desidratou com eficiência a CPI da Petrobras, em sua parceria amplamente majoritária com o PMDB. Esta aliança também constitui o eixo de maioria governista na CPI do Cachoeira.

Resta saber se essa maioria será usada para o bem, nos termos da vontade manifesta das pessoas que assinaram a proposta da Lei da Ficha Limpa, mais de um milhão, e daquelas que protestaram nas ruas contra a corrupção, ou para enveredar pelos caminhos tortuosos do lado escuro da força. O começo não parece promissor: os partidos indicaram para compor a CPI políticos com pendências na Justiça, fichas-sujas reconhecidos que só assumiram porque a Ficha Limpa não valeu para as eleições de 2010. Mas o risco maior que ronda a CPI é de ela ser tomada pelo sentimento de revanche sinalizado pelo PT, em vez de atender às demandas da sociedade pela moralização da coisa pública.