Título: Atenção para o descompasso
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 31/01/2007, Opinião, p. A13

A economia mundial está em excelente forma, mas seu cenário político é preocupante. Esse contraste, discutido por Lawrence Summers nesta coluna do Financial Times em 26 de dezembro de 2006, foi também um foco do encontro anual, na semana passada, do Fórum Econômico Mundial, em Davos. A questão é se e como essa discrepância poderia acabar.

Os fatos parecem claros: a economia mundial está em período dourado de amplo compartilhamento de crescimento, lucros elevados, baixos juros real e nominal, e baixos preços de ativos de risco. Nosso mundo, em sua marcha, ajustou -se com alguma facilidade a uma série de choques: o colapso das bolsas de valores após 2000; as calamidades terroristas de 11 de setembro de 2001; as guerras no Afeganistão e no Iraque; atritos sobre as políticas americanas; um salto nos preços reais do petróleo para níveis não vistos desde a década de 1970; a suspensão das negociações na Rodada Doha; e o confronto e as ambições nucleares do Irã. Nosso mundo, com semelhante relevância, lidou com com o ressurgimento econômico da China e da Índia.

Essa lista de choques é, ela mesma, em parte, uma conseqüência de pressões políticas: clima protecionista, turbulência em grande parte do mundo islâmico e proliferação nuclear. A isso deveria ser acrescentada a comprometida autoridade moral dos EUA e seu malogro até agora no Iraque, o descrédito em que caíram muitos líderes mundiais, o escorregão russo para ditadura plebiscitária, a estagnação política da União Européia (UE) e a incapacidade de criar um regime mundial para enfrentar as mudanças climáticas. Como poderiam as contradições subjacentes ser resolvidas? Um cenário possível poderia ser o perfeito oposto do consenso generalizado de desapontamento econômico e estabilidade política. Justificando minha hipótese, assinalei o histórico de Davos em termos de não detectar cenários que em breve viriam a se concretizar.

A culpa disso pode ser atribuída à captura das mentes de um grupo de pessoas de opinião semelhante por uma percepção majoritária. Hoje, a subestimação de prêmios de risco e a combinação de juros baixos com crescimento rápido é quase um convite a erros na condução da economia. Enquanto isso, os líderes políticos mundiais, conscientes dos risco de conflito e confiantes em que a prosperidade de seus povos os permitirão se conservar no poder, poderão continuar a empurrar as coisas com a barriga. Esse desdobramento surpreendente é bastante possível. Uma segunda alternativa é que as trilhas econômica e política continuem em suas direções distintas. A razão disso poderia ser que, longe de serem distintas, os contrastantes domínios da economia e da política são duas faces de apenas um só mundo globalizado.

Por exemplo, é a sempre crescente demanda mundial por energia que deu ao Oriente Médio sua importância estratégica e à Rússia sua nova trajetória de influência mundial. É a disseminação de oportunidades econômicas que permite aos gigantes asiáticos modificar tão rapidamente o equilíbrio mundial de poder. É o palpável contraste entre os sucessos do mundo e seus fracassos que está criando tantos males em todo o mundo. É a enorme riqueza beneficiando uma minúscula minoria a fonte de tanto ressentimento. É a globalização que alimentou a criação de redes criminosas internacionais, migração ilegal e terrorismo.

Novamente, à globalização está sendo cada vez mais atribuída a culpa pelo crescente infortúnio das pessoas nas classes de média e baixa renda em países de alta renda, e pelo fato de os países de renda média estarem espremidos entre, por cima, os países avançados e, por baixo, pela China hoje e pela Índia amanhã. O consenso em torno das políticas centradas no mercado chegou a varrer as abordagens ideológicas do palco político e transformou muitos políticos em meras celebridades de um "reality show". O fato de que a economia está tornando nosso mundo mais interdependente e conectado, ao passo que a política continua nacional ou local, torna inevitável o contraste entre economia e política. O personagem que Samuel Huntington, de Harvard, denominou "homem de Davos" não é um espectador passivo. É plausível, portanto, que o desarranjo político e o sucesso econômico continuem convivendo paralelamente e, nesse caso, o desafio seria o de evitar o alargamento de um fosso demasiado largo entre os dois. Pois, como aprendemos na primeira metade do século XX, um reação suficientemente grande é capaz de causar devastação. Numa era nuclear, essa devastação seria ainda maior. Nós temos a capacidade de destruir nosso mundo.

-------------------------------------------------------------------------------- A subestimação de prêmios de risco e a combinação de juros baixos com crescimento rápido é quase um convite a erros na condução da economia atual --------------------------------------------------------------------------------

Uma terceira possibilidade é que a política prevaleça sobre a economia, como entre 1914 e 1945, e por muito mais tempo no "Segundo Mundo" comunista e em grande parte do denominado "Terceiro Mundo". Um ataque contra o Irã - uma possibilidade bastante discutida em Davos - nos levaria bem mais perto do choque de civilizações previsto pelo professor Huntington e temida por tantos outros. Nesse caso, o atual otimismo econômico revelar-se-ia infundado - possivelmente aniquilado por um mundo de petróleo a US$ 150 o barril na esteira de um fechamento do estreito de Hormuz, através do qual flui tanto do petróleo mundial.

Mas há também a possibilidade muito mais tranqüilizadora de que a economia prevaleça sobre a política. Uma das marcas históricas de nossa época é a maneira como países enormes, como a China e a Índia estão centrando sua política no objetivo da prosperidade. Isso os obriga a aspirar à estabilidade interna e mundial e aceitar abertura internacional e dependência mútua. Esses países não vêm ganhos em conflitos internacionais. É com certeza possível que essa percepção de prioridades nacionais ganhe mais terreno no mundo, inclusive o Oriente Médio.

Num mundo assim, governos seriam cada vez mais obrigados por suas populações a fazer do mundo em que vivemos um mundo no qual possamos viver. Isso faria com que os governos cooperassem na produção dos bens públicos mundiais dos quais todos dependem: incentivo à estabilidade, abertura ao comércio, contenção da proliferação nuclear, gestão de nosso meio ambiente compartilhado, estímulo ao crescimento e enfrentamento de países fracassados e a globalização dos "maus".

Num mundo assim, as questões discutidas em Davos - mudança climática, a Rodada Doha e o desenvolvimento africano - poderiam ser encaminhadas com êxito. As dificuldades de ação coletiva são profundas. Mas quanto mais motivados estiverem os povos do mundo a vê-las resolvidas, maior será a probabilidade de que as dificuldades sejam vencidas. E, além disso, quanto menos críveis forem as abordagens unilaterais a uma solução, mais prováveis serão as cooperativas.

O "dilema de Davos" deste ano - o contraste entre o estado favorável da economia mundial e o problemática cenário político - é bastante claro. Mas não sua resolução. Um leque de desdobramentos políticos, dos perversos e catastróficos aos desconfortáveis e até mesmo benignos, é concebível. O desfecho não é inevitável. Nós podemos optar. Temos o dever de tomar as decisões certas - escolher cooperação em vez de conflito e, como disse Tony Blair, abertura em vez de voltar nossas costas ao mundo. A hora de escolher é agora.