Título: Validação de patentes é questionada
Autor: Goulart, Josette
Fonte: Valor Econômico, 12/09/2006, Legislação & Tributos, p. E1

As patentes farmacêuticas concedidas no Brasil pela simples revalidação das que já existiam fora do país - conhecidas como pipelines - estão sob a mira do desembargador federal André Fontes, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região, no Rio de Janeiro. O magistrado quer discutir a constitucionalidade dessas patentes. Ainda falta que um colega de sua turma de julgadores concorde em levar a questão ao pleno do tribunal, mas a simples menção da possibilidade já deixou a indústria farmacêutica estrangeira em alerta. Uma série de pareceres foram produzidos por constitucionalistas para derrubar a tese de Fontes. Outro efeito imediato foi colocar a discussão na agenda da procuradoria do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que até então se limitava a questionar as patentes pipeline que considerava terem sido mal concedidas.

Com o argumento de se fazer um período de transição - de uma época em que o país não permitia patentes farmacêuticas até a entrada em vigor da nova legislação - incluiu-se na Lei de Propriedade Intelectual, de 1996, um dispositivo que permitia que os laboratórios detentores de patentes de remédios em uso em outros países pudessem ter concedido o direito da patente no Brasil. Bastava para isso a simples revalidação da concessão no exterior sem qualquer análise no país. A indústria depositou ao todo 1.197 pedidos das chamadas patentes pipeline no INPI e 778 delas foram concedidas pelo instituto com base na lei. É justamente esse dispositivo que é agora discutido.

O presidente do INPI, Roberto Jaguaribe, diz que a pipeline foi o instrumento jurídico usado para permitir patentes que a lei não protegia, pois o quesito novidade não era atendido por aqueles fármacos já conhecidos no exterior. O drible na lei, no entanto, levou a muitas distorções. Isso porque muitas dessas patentes que tiveram pedidos de revalidação aqui nem tiveram seu direito reconhecido no país de origem. O instituto, na atual administração, apóia sua procuradoria no questionamento de muitas pipelines. O procurador geral do INPI, Mauro Maia, tem levado à frente discussões sobre patentes que perderam sua validade no exterior, como caso da patente ampla do Viagra ou então de casos em que os laboratórios pedem a extensão da validade da patente.

Boa parte desses casos circula pelo TRF do Rio, já que é lá a sede do INPI. E foi por isso que André Fontes se tornou a dor de cabeça dos advogados que defendem os laboratórios estrangeiros, pois é ele o presidente de uma das duas turmas do TRF do Rio especializadas em propriedade intelectual. Polêmico, o desembargador defende teses nada populares entre os empresários do setor. No caso das pipelines, quer convencer seus pares de que o dispositivo da Lei de Propriedade Intelectual que permitem a revalidação das patentes fere a Constituição sob muitos aspectos. Um deles é a questão da retroatividade das leis. "A Constituição proíbe a retroatividade das leis", diz Fontes. Para ele, as pipelines retroagiram ao conceder direito aos laboratórios sobre invenções que não tinham mais o quesito novidade e que portanto pudessem ser patenteadas no país.

Além disso, Fontes argumenta que não há isonomia de direitos entre estrangeiros e brasileiros. Nos Estados Unidos, por exemplo, o período de vigência da patente passa a ser contado de forma diferente que no Brasil, o que dá aos estrangeiros maior benefício do que teriam os brasileiros. O advogado Gustavo Morais, do escritório Dannemann Siemsen, que defende diversos laboratórios estrangeiros, diz que essa posição doutrinária de Fontes é minoritária e que os argumentos não têm força para serem levados adiante. Morais diz que o artigo 230 da Lei de Propriedade Intelectual, que prevê a revalidação, não viola a isonomia, pois ele pode ser usado tanto por estrangeiros quanto por brasileiros que tivessem patentes farmacêuticas no exterior. Na prática, entretanto, sabe-se que a indústria brasileira não possuía patentes no exterior. Morais argumenta ainda que engana-se quem acredita que a Constituição exige reciprocidade. "Ela fala em igualdade entre Estados, não tem nada a ver com reciprocidade", diz Morais. Uma das bandeiras encampadas por Fontes é a de que não há qualquer tipo de reciprocidade entre os Estados Unidos e o Brasil e que a questão das patentes farmacêuticas não é de direito e sim econômica.

Discussões teóricas a parte, o fato é que só o debate levantado por Fontes já levou a procuradoria do INPI até mesmo a verificar a possibilidade de o próprio governo levar a questão adiante por meio da Advocacia-Geral da União (AGU). Isso se for de interesse político do governo e se houver uma tese que se sustente. O INPI ainda não analisou a questão da constitucionalidade das patentes pipeline. O presidente Roberto Jaguaribe diz que a lei que permitiu as pipelines é uma aberração jurídica que trouxe inúmeros impactos negativos para o país, mas que daí a considerá-la inconstitucional é preciso uma discussão aprofundada.