Título: Os riscos da economia boliviana
Autor: Fraga, Érica
Fonte: Valor Econômico, 19/09/2006, Opinião, p. A15

O fuscadas pelo confuso vaivém do processo de nacionalização do gás e os recentes confrontos do governo com a oposição, sérias ameaças à frágil estabilidade político-econômica da Bolívia ganham vulto. O fluxo de investimento estrangeiro direto está à míngua. Apesar de uma arrecadação fiscal crescente, a inexperiente equipe ministerial não consegue executar o orçamento, com prejuízo a investimentos. E, no mercado internacional, os preços do gás têm despencado, o que enfraquece a posição de Evo Morales nas negociações com a Petrobras.

Em meio a esses problemas, o presidente tenta convencer seu eleitorado de que a descontrolada gangorra que virou o processo de nacionalização do gás é sinônimo de promessa de campanha sendo cumprida. Ajudado pelo desempenho razoável da economia, até que ele tem tido sucesso na estratégia. Na casa dos 60% de aprovação, sua popularidade segue bem alta, embora tenha caído 20 pontos desde março. Mas dificilmente esse nível de apoio resistirá se a combinação dos riscos atuais afetar a economia, gerando instabilidade social.

Isso não quer dizer que a Bolívia esteja à beira do precipício no curto prazo. Sustentada por volumes pujantes de exportações, a economia deverá crescer em 2006 em torno da média de 3,5% dos últimos 15 anos. Amargando até o passado recente crônicos déficits em conta corrente, a partir de 2003 a economia passou a registrar superávits que, neste ano, deve beirar US$ 500 milhões, o equivalente a quase 5% do PIB. O principal sustentáculo dessas mudanças é o gás, commodity que a Bolívia tem em abundância e vende principalmente para o Brasil. Minerais como zinco e prata - alvos de uma aquecida demanda global - têm sido importantes coadjuvantes.

A disparada na produção e exportação do gás também explica a significativa melhora no resultado fiscal do governo, principalmente depois de aumento substancial das alíquotas de impostos pagos pelo setor. A arrecadação fiscal cresceu 46% no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período em 2005, chegando a US$ 2 bilhões, o equivalente a quase 20% do PIB. Mas esse cenário positivo pode se dissipar rapidamente se o governo não tomar providências para aumentar sua eficiência administrativa e atacar os riscos galopantes que rondam a economia.

A incerteza provocada pela crise social e política que assolou a Bolívia nos últimos três anos isolou o país de fluxos abundantes de investimentos estrangeiros diretos (IED). Depois de atingir uma média anual de US$ 800 milhões por seis anos consecutivos, o saldo líquido de investimentos estrangeiros despencou para US$ 197 milhões em 2003 e US$ 65 milhões em 2004. No ano passado, na contramão do que acontecia no resto da América Latina, a situação piorou ainda mais e o país sofreu, pela primeira vez em 15 anos, uma saída líquida de investimentos no valor de US$ 277 milhões. No primeiro semestre de 2006, o saldo de IED voltou a terreno positivo graças a investimentos programados no setor de mineração, mas ainda assim somou apenas US$ 104 milhões.

Por enquanto, esse estancamento nos investimentos não chegou a minar o crescimento econômico. Mas, a partir de agora, a economia global vai se expandir a um ritmo mais moderado. A economia dos Estados Unidos, segundo principal parceiro comercial da Bolívia depois do Brasil, já dá sinais claros de desaceleração e deverá crescer apenas 2,2% em 2007, contra 3,3% neste ano. Os preços do gás caíram 33% desde o anúncio da nacionalização do setor no início de maio deste ano e 60% desde o fim de dezembro de 2005, para cerca de US$ 5 por milhão de BTU. Isso dificulta a demanda da Bolívia por reajuste significativo no preço que a Petrobras paga pelo gás, atualmente em torno de US$ 4 por milhão de BTU.

-------------------------------------------------------------------------------- A incerteza provocada pela crise política que assolou a Bolívia nos últimos anos isolou o país de fluxos de investimentos estrangeiros diretos (IED) --------------------------------------------------------------------------------

A combinação de demanda global mais fraca e preços de commodities em patamares menores traz implicações preocupantes para a Bolívia. As exportações do país vão perder força como principal motor do crescimento e, para manter o moderado ritmo de expansão atual, outros componentes da demanda teriam de ganhar ímpeto. Mas as tendências não são alentadoras. As já ruins perspectivas de investimentos privados só pioram conforme a Bolívia avança de forma confusa em seu projeto de nacionalização, oscilando entre anúncios retumbantes de medidas radicais, seguidos de estabanados recuos "temporários" das mesmas. Sem investimentos externos, o projeto de industrialização e ampliação da capacidade de extração do setor de gás tende à estagnação, com sérios prejuízos ao potencial de crescimento da economia.

Pelo lado do gasto público, a administração Morales ainda não tem conseguido implementar os prometidos aumentos significativos em investimentos. Há três meses, o governo anunciou que pretendia encerrar 2006 com um déficit fiscal de 3,2% do PIB. Mas, ao longo do primeiro semestre, acumulou um superávit de 4,3% do PIB. Até junho, o governo havia conseguido realizar apenas 25% dos investimentos previstos para 2006, percentual não muito superior ao registrado no primeiro semestre de 2005, quando a administração de Carlos Mesa enfrentava severa crise social. Essa dificuldade em executar o orçamento é, em parte, consequência do despreparo técnico do gabinete de Morales: apenas quatro dos 16 ministros têm alguma experiência em administração pública ou privada.

Sem investimentos privados e com gastos públicos aumentando a ritmo lento, não há mágica que possa transformar o baixo poder de compra do consumidor boliviano em mola propulsora do crescimento. Ninguém tem dúvidas de que governar a Bolívia, país mais pobre da América do Sul, onde a paciência de uma sociedade altamente segmentada se esgotou há tempos, é uma tarefa hercúlea. Tampouco é difícil entender que a retórica radical de Morales é arma para sua própria sobrevivência política. A falta de consenso entre governo e oposição para o avanço da recém-empossada Assembléia Constituinte só torna as condições de governabilidade ainda mais complicadas.

Mas se quiser preservar a estabilidade econômica do país - sem a qual o mandato de Morales se enfraquecerá significativamente - o governo terá de combinar o discurso de mudança com uma dose maior de pragmatismo nas negociações com investidores, que os convençam a retomar investimentos, e na nomeação de gente capaz de administrar o país.

Érica Fraga é analista de América Latina da consultoria Economist Intelligence Unit em Londres.