Título: Polícia da China usa estrutura de TI dos EUA
Autor: Einhorn, Bruce e Elgin, Ben
Fonte: Valor Econômico, 20/09/2006, Empresas, p. B4

Google, Yahoo e Microsoft sofreram uma onda de reprovação pública no começo deste ano, por se curvarem à censura das autoridades chinesas a seus sites na internet. Mas outra forma notável de comércio tecnológico com a China está ocorrendo fora da tela do radar da população americana: grandes companhias dos Estados Unidos do setor produtivo estão se mobilizando para fornecer à polícia chinesa o que há de mais recente em termos de tecnologia da informação.

A Oracle vendeu softwares para o ministério da Segurança Pública chinês, que supervisiona investigações criminais e ideológicas. O ministério usa os softwares para gerenciar os cartões de identidade digitais que estão substituindo as carteiras de identidade em papel que os cidadãos chineses precisam carregar consigo. Enquanto isso, departamentos de polícia regionais da China estão modernizando suas redes de computadores com roteadores e controles adquiridos da Cisco Systems. E a Motorola está vendendo aparelhos de mão às autoridades chinesas que permitem aos policiais de rua recorrerem aos bancos de dados sofisticados que a EMC vende para o ministério da Segurança Pública.

"É um mercado que está muito aquecido", diz Simon Zhou, um alto-executivo da EMC em Pequim. "Podemos esperar grandes receitas com as agências de segurança pública da China."

A luta para vender tecnologia para as agências fiscalizadoras das leis da China parece, para começo de conversa, chocar com a intenção de uma lei americana de exportação implementada depois do massacre de centenas de manifestantes pró-democracia na Praça da Paz Celestial (Tiananmen), em 1989. Essas sanções proibiram a exportação para a China "de qualquer instrumento ou equipamento de detecção e controle do crime". "Queríamos minar, durante anos, a eficiência da polícia nas batidas, aprisionamento e tortura de dissidentes políticos, e não só daqueles envolvidos no movimento da Praça da Paz Celestial", explica o congressista americano Tom Lantos (representante Democrata da Califórnia), que ajudou a elaborar a lei.

Mas a mensagem foi mal administrada. O Departamento do Comércio dos Estados Unidos, que fiscaliza as sanções, as tem aplicado principalmente a itens como algemas, capacetes e armas de fogo. Pouca coisa da moderna tecnologia da informação que está sendo vendida para a polícia da China aparece na lista dos produtos banidos. Não há números de faturamento confiáveis para as vendas de tecnologia da informação, mas analistas do setor estimam que a cifra chegue às dezenas de milhões de dólares ao ano e está crescendo.

As companhias americanas afirmam não ter obrigação ou capacidade de determinar se as forças de segurança chinesas usam a tecnologia na repressão política. Pelo contrário, alguns executivos defendem que o capitalismo americano melhora a sorte dos chineses comuns. "Tudo que ajuda a China a se modernizar, vai ajudar a China a melhorar sua situação em relação aos direitos humanos", afirma John S. Chen, diretor-presidente da Sybase, uma companhia de Dublin (na Califórnia, EUA) que vende programas de bancos de dados para a polícia de Xangai. "Quanto mais exata a informação que a polícia tem sobre um indivíduo que está procurando, mais precisa e sensata ela poderá ser."

Mas a mesma tecnologia que ajuda a caçar traficantes de drogas ou assassinos, também pode ser empregada para rastrear e prender dissidentes, afirma Eric Harwit, um acadêmico chinês da Universidade do Havaí. "É uma faca de dois gumes."

Apesar da melhoria da sua imagem no cenário mundial, a China ainda possui um retrospecto triste na área dos direitos humanos. O Departamento de Estado dos EUA diz que o governo comunista mantém pelo menos 260 mil pessoas presas nos campos de "reeducação" ideológica. Entre os detidos estão ativistas pró-democracia do movimento espiritual Falun Gong, que o governo considera um culto ilegal. Tecnologia americana tem sido usada, pelo menos indiretamente, para melhorar a capacidade do governo de identificar membros da Falun Gond, segundo afirma Hao Fengjun, um ex-oficial de segurança que trocou a China pela Austrália.

Algumas companhias americanas chegaram a ponto de adotar práticas que não estão acostumadas, para satisfazer a pronunciada preocupação do governo chinês com agitações e protestos. Em livretos distribuídos em uma feira de tecnologia policial realizada em Xangai em 2002, a Cisco mencionava seus equipamentos em frases como "reforço do controle policial" e "estabilidade social progressiva". A Cisco, com sede em San Jose, na Califórnia, diz que não há nada de incomum em seu marketing na China. "Vendemos para organizações policiais em muitos países", diz Rick Justice, vice-presidente sênior de operações mundiais. "Fazemos negócios [na China] da maneira como fazemos negócios em qualquer lugar."

A Cisco e outras companhias enfatizam que, conforme exigido por lei, elas conseguem licenças do Departamento do Comércio para as vendas de tecnologia à China. "Seguimos atenta e eticamente todas as leis implementadas pelo governo dos Estados Unidos", diz Justice, da Cisco. Mas Richard C. Bush, um ex-assessor parlamentar que trabalhou nas sanções impostas após o massacre da Praça da Paz Celestial, demonstra surpresa quando informado sobre os tipos de contratos que as companhias americanas estão assinando com os chineses. Bush, que faz parte da Brookings Institution, um centro de estudos de Washington, acrescenta: "Em termos do que se propunha o esforço legislativo, os contratos são conflitantes? Sim".

Alguns analistas independentes atribuem a abordagem leniente do Departamento do Comércio ao seu entusiasmo nos últimos anos pela ampliação das exportações à China. Matthew S. Borman, secretário assistente do Comércio para exportações, responde que a agência simplesmente cumpre a lei: "Os itens controlados por esta autoridade são aqueles usados principalmente ou exclusivamente para o controle e detecção do crime". Bancos de dados ou computadores que podem ser usados em um escritório comum não estão cobertos, diz ele.

Mas Lantos, o congressista da Califórnia, diz que as sanções estão sendo solapadas. "A decisão do Departamento do Comércio de interpretar a lei ao pé-da-letra é absolutamente inescrupulosa", afirma ele. "Ao permitir que as companhias americanas vendam computadores de ponta e equipamentos de comunicação para a polícia chinesa, nossa nação está ajudando diretamente na repressão aos dissidentes políticos da China."

O resultado é que "os fabricantes de algemas não podem vender seus produtos para a polícia chinesa, mas a Cisco e outras companhias estão vendendo uma tecnologia muito mais útil para as autoridades chinesas", disse Harry Wu, um ex-prisioneiro político chinês que vive nos Estados Unidos, a um subcomitê dos direitos humanos da Câmara dos Representantes, em fevereiro. Na ocasião, seu pronunciamento foi obscurecido pelas pesadas críticas ao Google, Yahoo e Microsoft, por terem concordado em bloquear parte de seus sites chineses como condição para operarem no país.

Thomas Lam, presidente das operações chinesas da Cisco, diz: "Os produtos de software e hardware de rede que a Cisco vende na China são exatamente os mesmos que vendemos em todos os mercados do mundo. São os nossos usuários, e não a Cisco, que determinam suas aplicações". As companhias americanas também afirmam que se elas não vendessem para as autoridades chinesas, concorrentes de outros países forneceriam produtos similares.

-------------------------------------------------------------------------------- Ministério da Segurança Pública supervisiona investigações criminais e ideológicas com softwares da Oracle --------------------------------------------------------------------------------

Até recentemente, boa parte da polícia chinesa operava com tecnologia rudimentar, que, por exemplo, tornava difícil o compartilhamento de informações entre as delegacias locais. As companhias afirmam que ao venderem para as agências de fiscalização das leis, elas estão suprindo essa necessidade e também atraindo uma parcela mais ampla de clientes governamentais da China. A Oracle, fornecedora de softwares de cartões inteligentes para o ministério da Segurança Pública, faz um terço de seus negócios na China com o governo, afirma Derek Williams, presidente da divisão Ásia-Pacífico da companhia. Vender para o governo "é apenas uma parte de nossa estratégia regular", acrescenta ele. "Não vejo nenhum desses projetos como controvertidos."

Embora algumas companhias de tecnologia dos EUA venham fazendo negócios com a polícia chinesa desde os anos 1990, a verdadeira festa começou em dezembro de 2002, em uma conferência realizada em Xangai que recebeu o nome de Exposição de Infra-estrutura de Informação da China, patrocinada em parte pelo Ministério da Segurança Pública. Companhias de todas as partes do mundo montaram estandes para promover seus produtos, segundo documentos preparados para o evento. Os anfitriões chineses compraram instrumentos para projetos com nomes como Golden Customs (Alfândega Dourada) e Golden Tax (Tributação Dourada).

A campanha de aperfeiçoamento da tecnologia policial, que continua até hoje, é chamada de Golden Shield (Escudo Dourado). Na feira, o estande da Cisco estava cercado de telas de vídeo mostrando policiais da Califórnia usando os aparelhos de mão da Cisco ligados a bancos de dados com imagens de lojas e outros locais públicos, segundo afirma o escritor Ethan Gutmann, que participou do evento e escreveu o livro "Losing the New China", lançado em 2004. Ele afirma que as esperanças de que a tecnologia ocidental venha a desencadear uma reforma política na China não estão se concretizando.

Em 5 de dezembro de 2002, representantes de empresas americanas realizaram, em turnos, seminários de 45 minutos intitulados Golden Shield Solutions. A literatura promocional da conferência mostra que entre as companhias que enviaram representantes estavam a Cisco, EMC, Extreme Networks, IBM, Nortel Networks e Sun Microsystems. Foi aí que a Cisco fez sua promessa de apoiar a meta de "estabilidade social progressiva". Um folheto da IBM dizia que ela iria "usar sua tecnologia avançada para acomodar as condições do país".

Em defesa do marketing da companhia, o porta-voz da Cisco, Terry Alberstein, diz: "Os folhetos em questão eram voltados especificamente para a polícia local, delineando como os produtos da Cisco podem melhorar o acesso da polícia aos recursos de tecnologia da informação via colocação em rede de equipamentos de computação e ampliando o acesso aos recursos, tornando, por exemplo, informações adicionais disponíveis para a polícia em carros de patrulha". IBM, Nortel e Extreme Networks não quiseram comentar o assunto.

As empresas usam uma variedade de métodos para atrair as autoridades chinesas. A Motorola e a IBM colocam anúncios em chinês em uma publicação setorial chamada "Police Daily". A Motorola empenha-se em atender o desejo da população chinesa de uma fiscalização da lei eficiente, diz Balbir Singh, um executivo graduado da companhia na Ásia.

A EMC vem promovendo relações pessoais importantes, como quando esta fabricante de sistemas de armazenamento de dados correu em socorro do ministério da Segurança Pública, em setembro, diz Zhou da EMC. O Ministério estava mudando para uma nova sede em Pequim e seu diretor de tecnologia, Xie Yipin, percebeu que sua equipe estava sobrecarregado com a tarefa de transferir bancos de dados enormes e equipamentos. Então Xie ligou para Zhou. Será que a EMC não mandaria alguns engenheiros para ajudar na mudança, de graça?

Nascido na China e tendo trabalhado anteriormente para o governo, e considerando Xie como amigo, Zhou se diz ansioso por ampliar os negócios da EMC com o ministério. "Por termos uma relação de confiança, eu pude mandar os engenheiros primeiro, na esperança de que pudéssemos conseguir algum dinheiro depois", diz ele.

Como ele esperava, a EMC já conseguiu vários contratos com a polícia chinesa desde então, elevando para meia dúzia o número de projetos relacionados à segurança que a companhia implementou nos últimos dois anos, diz Zhou. A EMC não quis revelar o valor desses contratos. Xie não quis comentar o assunto.

É difícil dar exemplos da polícia chinesa usando tecnologia americana para perseguir dissidentes. O ministério da Segurança Pública não quis fazer comentários. Executivos da companhia afirmam que normalmente não trabalham diretamente com os funcionários da área de segurança na personalização de softwares e hardwares. Ao invés disso, o governo contrata "integradores de sistemas" locais, controlados por chineses, para fazer os ajustes finos. "Nós apenas fornecemos um produto de banco de dados", diz Williams, da Oracle. "Um banco de dados é como uma pasta de arquivos. Alguém precisa fornecer soluções sobre ela, e isso é feito por uma companhia chinesa."

Softwares americanos podem ser encontrados em esforços de modernização que apóiam pelo menos um braço do aparato chinês de controle ideológico: o Comando do Conselho Estatal para a Prevenção e Controle de Cultos. Mais conhecido como Repartição 610, numa referência à data em 1999 em que foi criado, este orgão vigia os seguidores de religiões não autorizadas como a Falun Gong.

Hao Fengjun trabalhou na Repartição 610 na zona norte da cidade de Tianjin até deixar a China no ano passado. De sua nova casa na na Austrália, ele se uniu aos protestos da Falun Gong contra a repressão. Hao diz que a agência de Tianjin possui um banco de dados com 30 mil membros da seita banida, além de nomes de membros de outros grupos religiosos não autorizados. Parte dos dados foram tirados do "hukou", um elaborado sistema de registro de residências que ajuda o governo a monitorar e controlar a população.

A digitalização do hukou, uma tarefa enorme que faz parte do Projeto Escudo Dourado, vem envolvendo tecnologia Americana, incluindo softwares fornecidos pela EMC, segundo executivos da EMC. "Além do uso que o bureau da segurança pública faz da tecnologia em casos criminais, o uso mais importante é o monitoramento e repressão aos seguidores da Falun Gong", diz Hao. As companhias americanas enfatizam que não determinam como os chineses devem usar seus produtos.

Embora esteja havendo uma objeção relativamente pequena em relação às vendas de tecnologia como um todo, a Cisco vem sendo mais investigada do que outras fabricantes, provavelmente porque atua na China há bastante tempo. No ano passado ela enfrentou uma resolução dos acionistas exigindo uma maior abertura em relação aos seus negócios com os chineses. A resolução foi derrotada por uma grande margem. (Com Peter Burrows, de San Mateo. Tradução de Mário Zamarian)