Título: Crédito para baixa renda ajudou o país a crescer, diz Singer
Autor: Henrique Gomes Batista
Fonte: Valor Econômico, 22/12/2004, Internacional, p. A9

Apesar das semelhanças, há uma grande diferença entre a política econômica do atual governo e a adotada pelo tucano Fernando Henrique Cardoso. É a opção dada ao microcrédito, na opinião de Paul Singer, economista fundador do PT que comanda a Secretaria de Economia Solidária do Ministério do Trabalho. Singer defende o controle da inflação com o fim da indexação dos preços administrados, como luz, telefone e combustível, o que significaria, na prática, revisar os contratos de privatização firmados no governo anterior. Na opinião de Singer - austríaco de 72 anos que imigrou para o Brasil em 1940 e chegou a comandar a greve que parou por um mês a indústria paulista em 1953 - o aumento dos financiamentos para as camadas mais pobres da população - dentro desta política de microcrédito - justifica parte do bom crescimento da economia. Crítico da atual estratégia de aumento dos juros brasileiros, Singer vê essa prioridade dada ao financiamento aos mais pobres como uma opção salvadora no atual cenário. "Se a política do Copom fosse estendida a todos os setores do governo a economia pararia". O governo deve reforçar sua política de microcrédito e vai começar a emprestar dinheiro para as famílias beneficiadas pelo Bolsa Família no início de 2005. Essa medida, em fase de finalização nos ministérios do Trabalho e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, visa garantir que os beneficiados pelo programa social do governo tenham renda, a chamada porta de saída da ajuda federal. O secretário, professor da Universidade de São Paulo, avalia que outro mérito do atual governo é incentivar o crescimento das cooperativas de crédito, já que, para ele, "banco não sabe trabalhar com pobre". Para os próximos dois anos de mandato Singer espera que o governo interfira de forma mais efetiva no câmbio para garantir os superávits da balança comercial - que considera vitais para a economia - e quer também que o governo revise a norma do Conselho Monetário Nacional (CMN) que proíbe o empréstimo a inadimplentes. Leia a seguir os principais trechos da entrevista: Valor: Como o senhor avalia os críticos que afirmam que a política econômica é uma mera continuidade da do governo anterior? Paul Singer: Dizer que o governo Lula repete ou continua a política econômica do governo de FHC em parte é verdadeiro, não nego, mas em um particular é muito diferente: no microcrédito. Há um esforço do governo para incluir financeiramente os excluídos. Houve uma medida provisória de julho de 2003, que já é lei, e que permite a "bancarização" dos pobres. Hoje já há quatro milhões de contas supersimplificadas, conseguimos instituir o empréstimo em folha de pagamento em um convênio com as centrais sindicais. Fizemos isso também com os aposentados e foi muito importante, pois os juros são muito mais baixos. Ou seja, você tem uma extensão do sistema financeiro aos mais pobres que é muito importante. Isso é uma política de governo e ela é consistente. Uma parte desse bom momento da economia vem dessas políticas e da ampliação do acesso ao crédito a camadas muito carentes que usam o dinheiro para comprar coisas, seja para consumir, seja para tentar ganhar a vida. E há dados mostrando que o volume de crédito cresceu em 2003 e 2004. Valor: Essas medidas tiveram algum efeito para reduzir o elevado custo do crédito? Singer: O crédito no Brasil é um dos mais caros do mundo. No que se refere aos juros, a política do governo é, infelizmente, de aumentá-los, para esfriar um pouco a economia e evitar pressões inflacionárias. Ao mesmo tempo, está lançando um programa de microcrédito produtivo orientado que será de juros razoavelmente baixos, de 2% a 4% ao mês, preferencialmente 2%. Isso é normal a um governo que faz políticas contraditórias e nenhum governo consegue evitar isso. E seria loucura transformar a política antiinflacionária do Conselho de Política Monetária (Copom), do Banco Central (BC), em uma diretriz, em política de todo o governo. Se isso ocorresse, a economia brasileira pararia. Valor: Quais são as próximas medidas que o governo está analisando na área de microcrédito? Singer: Um programa no qual eu e meus companheiros apostamos bastante é o de microcrédito voltado às famílias cadastradas no Bolsa Família. É um programa que vamos fazer junto com o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que promove o Bolsa Família, que ainda este ano vai chegar a 6,5 milhões de famílias, ou cerca de 40 milhões de brasileiros. É fundamental que essas pessoas sejam induzidas e amparadas para começar a ganhar a própria vida, o que o pessoal do programa chama porta de saída. O programa tem um êxito danado, mas o importante seria usar esse dinheiro que as famílias passam a receber como base para depois poder tomar empréstimos e montar alguma atividade. É claro que nós estamos dando preferência à economia solidária, pois para uma pessoa muito pobre abrir um negócio sozinha é mais complicado. Valor: Essa proposta está em fase de finalização? Singer: Não tenho uma data certa, mas será logo. Usaremos recursos de um fundo de desenvolvimento social que está quase parado. Vamos também fazer uma parceria com a Caixa Econômica Federal, que vai ser o duto que vai encaminhar esses recursos às famílias que devem receber esse financiamento. É preciso montar esse sistema, ele está sendo discutido há três meses com a Caixa e com o Ministério de Desenvolvimento Social e no começo do ano espero que já estejamos começando a fazer os empréstimos. Valor: Qual o volume de recursos que serão utilizados? Singer: Entre R$ 300 milhões e R$ 400 milhões é o que temos disponível. Não temos o número exato ainda. Nem estão definidos valores para cada família ou a taxa de juros a ser aplicada. Tem ocorrido várias reuniões por semana.

Os bancos não trabalham bem com os pobres. Vamos incentivar que as cooperativas entrem no crédito urbano"

Valor: A família vai poder usar o empréstimo ao mesmo tempo em que recebe o Bolsa Família? Singer: Sim. A família só está no programa Bolsa Família por não ter renda ou por estar abaixo de um patamar bastante restrito de renda. Junto com a possibilidade de empréstimo ela vai receber informações sobre cooperativismo e uma série de incentivos para que ela possa iniciar uma atividade nova, sozinha ou em associação com vizinho, parentes ou pessoas que ela se dispor. No momento em que ela começar a ganhar dinheiro e ultrapassar o limite do programa, a Bolsa Família acaba. Tem outra idéia que quero ver se o Patrus (Ananias, ministro do Desenvolvimento Social) aceita: criar um adiantamento à família de um certo número de bolsas para que a ela tenha capital. O governo não perde nada por isso, muito pelo contrário, a família vai começar a sustentar-se. Se você insistir em fazer o pagamento da bolsa por mês fica mais complicado, é muito difícil para a família guardar o dinheiro. Valor: Isso está sendo discutido para o seguro desemprego? Singer: Na Europa fazem isso com o auxílio desemprego. O desempregado faz um projeto, submete a uma comissão e recebe o auxílio desemprego de um determinado período futuro, o que é muito bom, pois se der certo sua iniciativa, o desempregado não vai mais precisar receber o benefício. Tenho levantado essa discussão no Ministério do Trabalho e há boa vontade nisso, mas temos que resolver a questão jurídica. Aprendi aqui no governo algo que eu não sabia: quando você está fora do governo pode fazer tudo o que a lei não proíbe, mas quando você está no governo só pode fazer o que a lei manda, determina. Eu ainda estou para me acostumar com isso. O ruim é que o seguro desemprego é muito curto no Brasil, só três ou cinco meses, e a margem de manobra fica reduzida. Valor: Como o senhor avalia a situação das cooperativas de crédito no Brasil? Singer: Uma das coisas que o governo está fazendo extremamente bem é estimular as cooperativas de crédito, que estavam praticamente proibidas ou muito restritas nos governos anteriores, desde os governos militares. Hoje nós temos 1.400 cooperativas de crédito pelo Brasil e elas estão crescendo muito depressa, ajudadas, involuntariamente, pelos juros do Copom. Hoje, para qualquer tipo de financiamento, se paga juros horrendos, isso quando o banco te empresta. As cooperativas são uma grande alternativa para os que não têm crédito ou não têm como pagar os juros. As cooperativas já estão fazendo microcrédito na área rural, pelo Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf), de forma mais eficiente que os bancos. Os bancos não trabalham bem com os pobres. Não é da cultura deles. Para as cooperativas é, até por razões ideológicas. Vamos incentivar que elas entrem no crédito urbano. Valor: A situação das cooperativas é confiável? Singer: Ainda existe a resistência do BC e do Ministério da Fazenda, com uma atitude um tanto quanto conservadora, pois entendem que as cooperativas não merecem confiança. O risco de fraude nas cooperativas é pequeno. Na política do Delfim (Netto, ex-ministro da Fazenda), quando ele foi o czar da economia brasileira, sua meta era fundir os bancos, ele só queria banco grande, tinha noção que bancos maiores eram mais seguros. E a nossa política é exatamente o contrário, queremos instituições democráticas, abertas aos pobres e, claro, trabalhando bem, sem quebrar. O que se está fazendo para dar mais solidez às cooperativas são as centrais de crédito. O BC não aceita cooperativas isoladas, elas têm que estar integradas nestas centrais que hoje estão se unindo, que previnem políticas imprudentes das cooperativas. Valor: O governo estuda alterar a política de restrição de crédito aos inadimplentes? Singer: Pobre é um bom pagador. O Lula disse no ato do lançamento do programa de microcrédito produtivo orientado que pobre jamais quebrou banco. A verdade é que ele nem entra no banco, mas quando entra a sua inadimplência costuma ser fração de 1%, fração de 2%. A inadimplência do sistema convencional está na ordem de 20%. No Brasil, o inadimplente é proibido de receber empréstimo bancário, há uma resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) que eu, sinceramente, acho uma das idéias mais absurdas, mas está lá. Então o pobre quando deixa de pagar nunca vai conseguir um empréstimo para pagar sua dívida, justamente quando mais precisa. Na bancarização dos pobres, muita gente abriu conta na esperança de receber um crédito para quitar dívidas e ele não pôde receber crédito, é uma loucura isso. Também já estamos agindo, não eu, mas o governo, para mudar essa resolução do CMN, que é antiga. Essa proposta de mudança está sendo cogitada, ao menos aos mais pobres, que são os detentores das contas supersimplificadas. Eu não sei se vão estender essa mudança a todos, eu estenderia muito mais do que apenas aos pobres. Mau pagador é outra coisa. O sistema de proteção ao crédito tem que existir, mas não pode atingir os inocentes. Valor: O senhor concorda com a recente interferência do Banco Central no câmbio? Singer: Acredito que o governo está fazendo a coisa certa ao interferir no câmbio. Deveria fazer isso deliberadamente. O ministro Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento) soou o alarme de que com o real se valorizando nós colocaríamos em risco nossas exportações e nosso superávit, que agora são importantíssimos para nossa situação externa. O superávit agora é uma questão de autonomia e soberania nacional, algo vital. Defendo a taxa de câmbio que foi defendida pelo presidente recentemente, entre R$ 2,90 e R$ 3,00. Valor: E a decisão de voltar a aumentar os juros, o senhor viu necessidade nas medidas do Copom? Singer: O que não é consistente é aumentar a taxa de juros praticamente quando o desemprego começa a cair. Acho que é uma opção desnecessariamente arriscada que está sendo tomada, são meus colegas de governo e sou obrigado a aceitar o que fazem. Gostaria que houvesse prioridade na questão do emprego - que é o que o brasileiro quer - e fazer o combate à inflação através de controles. Acho que todo o sistema de indexação deveria ser revisto, o governo tem instrumentos para isso, poderia rever os contratos de privatização, pois a lógica do plano real ainda está em vigor e a indexação não se encaixa, cria uma fonte exógena de inflação que não tem nada que ver com a demanda. A opção de aumento de juros vem ainda num momento prematuro e talvez nem precisasse. Se pudéssemos acabar com a inflação extemporânea dos preços controlados - como energia, combustível, telefones - poderíamos conseguir baixar a inflação ao patamar que se quer, de 4%, 5% ao ano e poderíamos ter uma queda do desemprego mais vigorosa e contínua. Mas esse é o argumento deles (da equipe econômica), eles acreditam nisso e por isso não posso criticá-los. Não estou mandando recado para ninguém. Já houve momento em que eu apostei em um cenário e o governo apostou em outro e o governo estava certo, no início deste ano. Eu queria um aumento mais vigoroso do salário mínimo para aquecer a economia e a economia se aqueceu mesmo com a atual política.