Título: Brasil perdeu a capacidade de crescer
Autor: Lamucci, Sergio e Neumann, Denise
Fonte: Valor Econômico, 22/09/2006, Especial, p. A16

O ano de 2004 foi emblemático para a economia brasileira. A exemplo de 1995 e 2000, o país cresceu mais de 4%, mas o crescimento não se sustentou no ano seguinte. Há, no entanto, uma diferença. O biênio 2004-2005 mostrou que não foram causas externas ou extraordinárias (como o apagão de 2001) que impediram o Brasil de crescer. A restrição veio de dentro e esta enraizada na economia brasileira, analisa o economista Eduardo Giannetti da Fonseca. O Brasil, diz ele, "faz muito bem a parte fácil do crescimento, que é a recuperação cíclica. Mas quando começa a depender de investimento e expansão da capacidade, o Brasil mostra o seu terrível limite à acumulação de capital, tanto capital físico como capital humano."

A partir desse diagnóstico - e da avaliação positiva da gestão macroeconômica nos últimos quatro anos - Giannetti aponta o que piorou na gestão da economia brasileira desde 2003 e qual deve ser o foco para que o país pare de flertar com o crescimento e se case com ele. A receita é investir em capital - humano, fundamentalmente, mas também físico - e melhorar o ambiente de negócios.

Um pouco mais pessimista, Giannetti não vê no atual cenário político, o estadista capaz de fazer as mudanças corajosas que o país precisa no campo das reformas trabalhista, da Previdência e tributária. Por isso, desenha cenários quase desalentadores para os próximos quatro anos. E teme que a saída para encontrar o caminho do crescimento passe por uma crise. A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida antes de vir à tona o episódio do dossiê.

Valor: Qual a sua avaliação sobre a economia brasileira nos últimos quatro anos? Que modelo esteve em vigor?

Eduardo Giannetti da Fonseca: A minha avaliação é de que na política macroeconômica de curto prazo o governo foi bastante bem. Ele deu continuidade à estratégia do ministro Pedro Malan no segundo mandato de Fernando Henrique, com câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação. O tripé foi mantido e os resultados foram muito positivos. As metas de inflação foram cumpridas em 2005 e certamente serão em 2006. Após um susto de aceleração inflacionária no fim de 2004, o Banco Central conseguiu resgatar a credibilidade do regime de metas. A dívida pública, que assustou no fim do governo Fernando Henrique, está absolutamente sob controle, com um perfil bem melhor. Por fim, apesar da forte valorização do câmbio de 2004 para cá, as contas externas continuam em território francamente positivo. O Brasil não é mais tão vulnerável aos humores do mercado internacional.

Valor: E os aspectos negativos desses quatro anos?

Giannetti: O grande aspecto negativo, e que se torna mais preocupante agora, é o baixo desempenho do crescimento. A média do Real para cá foi de 2,4% ao ano. E como a população cresce 1,4% ao ano, a média de crescimento do PIB per capita nos últimos 11 anos foi de 1% ao ano, o que mostra uma economia quase estagnada. Isso num período em que os mercados emergentes estão crescendo a taxas muito altas. Estamos com um baixo crescimento crônico e tendo a crer que piorou nosso problema de crescimento no governo Lula.

Valor: Por quê?

Giannetti: Acho que 2004 foi um episódio muito importante. De 1995 para cá, há três momentos em que o Brasil ensaiou engatar um processo de crescimento mais expressivo, sustentado. Em 1995, 2000 e 2004, a economia cresceu mais de 4%. Em 1995 e 2000, não podíamos descartar a hipótese de que o crescimento não tinha tido seqüência porque o país foi acometido por choques mais ou menos aleatórios que interromperam o processo porque obrigaram o BC a aumentar os juros. Em 1996, tivemos a seqüela da crise cambial mexicana, tínhamos um forte déficit em conta corrente e estávamos muito vulneráveis. Em 2001, uma sucessão de choques que interrompeu o bom desempenho de 2000. Houve o apagão elétrico, o calote argentino e a recessão americana, com o estouro da bolha de informática. Em 2004, não houve nada desse tipo. Foi um ano em que bastaram quatro trimestres de crescimento um pouco mais forte para a economia brasileira - sem nenhuma perturbação de fora ou de dentro - para mostrar que a pressão inflacionária já aparecia e ia comprometer a meta do ano seguinte. A economia chegou muito perto da plena utilização de capacidade, que é limitada. Isso não foi uniforme entre os setores, mas obrigou o BC a corretamente apertar a política monetária.

Valor: Qual a lição de 2004?

Giannetti: O episódio de 2004 mostra que a restrição ao crescimento no Brasil não vem de choques aleatórios ou de perturbações externas. Ela é dada por condicionantes domésticos, que impedem o país de ter um processo de crescimento sustentado. O Brasil faz muito bem a parte fácil do crescimento, que é a recuperação cíclica. Mas, quando começa a depender de investimento e expansão da capacidade, o Brasil mostra o seu terrível limite à acumulação de capital, tanto capital físico como capital humano.

Valor: Essa capacidade não melhorou desde 2003?

Giannetti: A formação bruta de capital fixo no Brasil está na casa de 19% a 20% do PIB, um nível muito baixo para o crescimento que desejamos. A Índia investe em capital físico 28% do PIB e a China, 40% do PIB. Mas as pessoas talvez não se dêem conta como é limitado o número que temos para medir o esforço de acumular capital, dado pela formação bruta de capital fixo, que mede o investimento na construção civil e em máquinas e equipamentos. Ele é limitado porque não dá conta do elemento que talvez seja mais importante nas condições contemporâneas, que é a formação de capital humano. Se uma empresa constrói um galpão, isso entra na contabilidade nacional como investimento. Mas, se ela investe em treinamento, isso aparece como despesa. Olhando apenas a formação bruta de capital fixo, nós já ficamos mal na foto. Mas a questão é bem mais grave, porque, na hora em que tivermos uma estimativa estatística do esforço de formação de capital humano, ficará claro que a nossa defasagem é ainda maior.

Valor: O que explica a dificuldade para investir em capital físico e humano?

Giannetti: Acho que há dois fatores básicos e que pioraram ao longo do governo Lula. O primeiro é um gigantesco "crowding out" fiscal. A carga tributária, que está em 38% do PIB, continuou crescendo ao longo do governo Lula. Em cima dele você tem um déficit nominal (resultado das contas públicas que inclui o pagamento de juros) de 3% do PIB, o que significa que 40% da renda nacional brasileira ou mais são anualmente transferidos para o setor público, onde se transformam não em investimentos, mas em gastos correntes. O investimento total do governo em capital fixo está em torno de 2,5% do PIB, embora ele arranque da sociedade 40% do PIB. Esse é o primeiro ponto, que se agravou ao longo do governo Lula. A carga tributária continuou aumentando e a qualidade do gasto público piorou, os gastos correntes aumentaram, com as despesas com funcionalismo e o aumento do salário mínimo e seu impacto sobre a Previdência.

Valor: E qual é o outro entrave à acumulação de capital?

Giannetti: É o ambiente de negócios, outro aspecto em que o governo Lula foi mal. O clima de investimentos no Brasil é muito ruim. O sintoma mais escancarado disso é o tamanho a que chegou a informalidade nas relações econômicas. Mais da metade da população economicamente ativa não tem uma situação regular de emprego. É uma selva. É uma caricatura de uma economia de mercado. Você está num país em que contratar um funcionário regular é quase a exceção. E há essa pesquisa do Banco Mundial sobre a maior ou menor dificuldade de abrir, gerir ou fechar um negócio. O Brasil está nas piores colocações. 152 dias é o tempo que demora para se abrir um negócio. No Canadá são três dias. Na Austrália, dois. O empreendedorismo fica muito tolhido.

Valor: Mas isso piorou no atual governo ou já vinha ruim?

Giannetti: É algo que já veio ruim, nada foi feito e continua se deteriorando. Se a Microsoft tivesse surgido no Brasil, estaria até hoje na garagem em que veio ao mundo, provavelmente vendendo produtos piratas porque não teria acesso ao crédito, nem uma situação regularizada e formalizada de emprego. Outro ponto em que a deterioração no governo Lula me parece muito clara é no investimento em infra-estrutura. Vinha sendo montado um marco legal com agências reguladoras independentes, capazes de dar previsibilidade e confiabilidade ao investimento privado. O governo Lula resolveu desmontar tudo isso, politizou as agências reguladoras, tudo em nome das Parcerias Público-Privadas (PPPs). Nenhuma PPP federal saiu do papel. Acho que essas duas questões dão conta de por que a economia flerta com o crescimento, mas não se casa com ele. A restrição é de oferta, não é de demanda. E se ilude quem imagina que a redução dos juros primários vai resolver esse problema. Não vai. Juro baixo não é sinônimo de crescimento. É bom, é muito bem vindo. Mas se há problemas estruturais como esses, o investimento privado não ocorre.

Valor: A aposta do governo de tentar criar um mercado interno de consumo mais forte estava errada?

Giannetti: Depende de como você cria esse mercado interno. Se você o faz com gente trabalhando, gerando renda, ele é muito bem vindo. Mas se você cria o mercado interno transferindo renda de um lugar para o outro na economia, tributando famílias e empresas para fazer assistencialismo, há apenas transferência de renda de um lugar para o outro. É esse o modelo que está sendo seguido. O Ricardo Paes de Barros (economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) tinha dito uma vez, que se o governo soltasse o dinheiro de helicóptero a distribuição de renda no Brasil melhoraria. Acho que eu consegui dar uma expressão numérica para isso. Em 2005, o gasto público per capita foi de R$ 4.280 e o gasto público primário (excluindo juros) per capita foi de R$ 3.470. Ou seja, descontando o pagamento de juros, o governo gastou em nome de cada cidadão R$ 3.470. Depois eu calculei qual é a renda média por habitante dos 50% mais pobres. Como eles recebem 14% do PIB, a renda média por habitante dos 50% mais pobres é R$ 2.955. Ou seja, o gasto público primário per capita no Brasil é 15% maior do que a renda média por habitante da metade mais pobre da população. Isso aqui deixa claro como o Estado brasileiro é uma máquina monstruosa de concentrar renda.

-------------------------------------------------------------------------------- O gasto público primário per capita é 15% maior do que a renda média da metade mais pobre da população. " --------------------------------------------------------------------------------

Valor: Com o Bolsa Família e a Previdência, parte do gasto público não está indo para os mais pobres?

Giannetti: Mas é uma migalha. Mesmo com tudo isso, o Estado brasileiro é uma máquina monstruosa de concentrar renda. Tenho sérias dúvidas em relação ao Bolsa Família. Qualquer sociedade organizada tem programas emergenciais para populações vivendo situações de carência, mas o Bolsa Família está indo muito além.

Valor: Por quê?

Giannetti: Primeiro porque são 46 milhões de pessoas penduradas nisso. Uma coisa é uma assistência emergencial, que deve haver. Outra coisa é a expectativa que está se criando, de que isso é um novo modo de vida, de que daqui para frente sempre vai haver aporte de recursos do governo. O que mais me incomoda é o governo comemorar que mais um milhão de brasileiros têm acesso ao Bolsa Família. Se há alguma coisa a ser comemorada, é quando um milhão de pessoas saem do Bolsa Família. Eu gostaria que estivesse claro, desde o início, qual é a porta de saída.

Valor: E os aumentos reais do salário mínimo no governo Lula?

Giannetti: O aumento do mínimo criou um enorme déficit. Nenhum país resolveu problemas de desigualdade e privação material aumentando o mínimo, e não vai ser o Brasil que vai inaugurar esse caminho. Eu estaria muito mais satisfeito com um programa social que redundasse em formação de capital humano focalizado em crianças e jovens freqüentando o ensino fundamental do que com esse tipo de transferência de caráter, eu não vou dizer só, mas muito marcadamente assistencialista.

Valor: O Brasil gasta pouco com a educação básica ou os recursos são mal utilizados?

Giannetti: No agregado, o que o Estado brasileiro gasta com educação não é muito diferente do que se verifica em outros países de mesmo nível de renda, em torno de 5% do PIB. O problema é que no Brasil uma fatia muito elevada desses recursos é capturada pelos mais ricos no ensino superior, cerca de 20% do total do orçamento público em educação.

Valor: Qual deveria ser a principal meta do novo governo em educação?

Giannetti: Eu tenho uma proposta. Não tem a menor perspectiva de ela ser adotada, porque a resistência a ela é enorme: só teria o ensino fundamental completo quem passasse num exame público nacional ao fim dos oito anos. Falta um termômetro que indique precisamente, escola por escola, qual é a qualidade do ensino fundamental ali. O que a sociedade quer saber é como é que sai o aluno que passou por essa escola.

Valor: Para ter um resultado mais efetivo, não teríamos que ter uma sociedade mais organizada? Imagine uma cidade muito pobre em que as famílias recebem o Bolsa Família. As crianças estão indo para a escola, vão fazer o exame e podem ser reprovadas, e aí?

Giannetti: Elas vão ser reprovadas, mas aí é o seguinte. A sociedade mandou dinheiro para lá, como mandou para outras escolas. Por que é que essa escola não entregou e as outras entregaram? Os pais vão saber. Muitos, infelizmente, não vão dar a devida atenção ao fato, mas a informação está lá. É o paraíso dos tolos comemorar que 97% das crianças brasileiras freqüentam a escola e está universalizado o ensino fundamental.

Valor: A partir desses déficits que se acumulam ao crescimento futuro, o que se pode esperar para os quatro anos se Lula for reeleito, do ponto de vista da economia?

Giannetti: Se não usar o começo do mandato para implementar algumas reformas, vamos ficar mais quatro anos flertando com o crescimento. Quais são as reformas? A primeira é a trabalhista, revendo legislação, encargos e a Justiça do Trabalho. A segunda é a reforma da Previdência, que já é um problema grave e vai piorar com o tempo. O Estado brasileiro transfere mais recursos para cobrir o déficit da Previdência do funcionalismo do que para 37 milhões de crianças freqüentando o ensino fundamental nas escolas públicas. Um país que comete essa enormidade se condena à miséria e à ignorância perpétuas. Em vez de investir em capital humano, está desperdiçando em distorções herdadas do passado. Uma reforma da Previdência que passe pelo INSS e o regime jurídico único do funcionalismo é fundamental para melhorar a qualidade do gasto público e liberar recursos para o investimento. Por fim, a reforma tributária. Teríamos que ter uma mudança muito corajosa de definições de atribuições para tributar e de responsabilidades dentro do setor público. Quem é responsável pelo que em transporte, educação, saúde? Mas daí eu já estou sonhando com um estadista que o Brasil dificilmente vai ter.

Valor: Não vai ter nessas eleições e nem nas próximas?

Giannetti: Está difícil vislumbrar, até porque a resistência a uma mudança desse tipo é muito grande, são tantos interesses encastelados que fica difícil ver alguém conseguindo romper. Talvez o único caminho que leve a isso seja uma crise, infelizmente.

Valor: O sr. a vê a possibilidade de uma crise nos próximos anos?

Giannetti: Há dois cenários básicos. Um é a resignação a um crescimento medíocre, mantém-se a estabilidade macroeconômica, mas o país continua encolhendo. Repete-se o primeiro mandato. Ou então a fadiga do baixo crescimento leva o governo a apelar para medidas de crescimento no curto prazo que vão gerar problemas de desequilíbrio macroeconômico que vão exigir novos planos de estabilização mais à frente.

Valor: O cenário de que esse governo possa começar a consertar esses problemas não existe?

Giannetti: Acho que existe, mas não estou vendo no debate político no Brasil um grau de compromisso e de clareza que dê a esse cenário uma probabilidade um pouco maior.

Essa é a primeira de uma série de entrevistas sobre a economia nos últimos quatro anos e a perspectiva para o futuro governo