Título: Instabilidade de regras inibe investidor e faz PIB patinar
Autor: Lamucci, Sergio e Neumann, Denise
Fonte: Valor Econômico, 27/09/2006, Política, p. A6

Nos últimos 15 anos, o Brasil cresceu, em média, pífios 2,56% ao ano. Além de ser um retrato do passado, esse percentual é, também, uma medida da capacidade atual de crescimento da economia brasileira, segundo avaliação do ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore. O país investe, atualmente, 17% do Produto Interno Bruto (PIB), possui uma formação deficiente de capital humano e uma baixa produtividade. O resultado desta equação, explica, é a incapacidade de crescer a um ritmo mais acelerado e por um longo período de tempo.

Pastore diz que é indispensável melhorar o ambiente regulatório e resolver as restrições ambientais que hoje emperram o andamentos de novos projetos, como forma de aumentar a taxa de investimento na economia, e resolver o primeiro elemento da equação. O segundo elemento é uma questão de qualidade de gasto, pois o país já dispende 5% do PIB na educação. "Nos próximos três a cinco anos, o que vai fazer a diferença é o estoque de capital. O capital humano vai fazer muita diferença daqui a dez anos, mas você tem que começar a fazer agora as duas coisas, para nos próximos dez anos acelerar as taxas de crescimento para um nível sustentável acima do que estamos hoje."

Para Pastore, o crescimento baixo e a trajetória insustentável de expansão dos gastos públicos - ritmo de 10% ao ano no últimos quatro anos, em termos reais - foram os dois grandes problemas do governo Lula no front econômico.

O economista fez alguns elogios ao governo Lula, dizendo que ele foi bem "no plano da macroeconomia de curto prazo". Pastore aprova a estratégia de combate à inflação e as linhas gerais da condução da política monetária e lembra que o governo cumpriu as metas de superávit primário, apesar do aumento de gastos. Mas o grande ganho mesmo foi o ajuste nas contas externas, o qual, porém, se deveu ao cenário externo muito favorável, diz Pastore. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Qual a sua avaliação sobre a economia brasileira nos últimos quatro anos?

Affonso Celso Pastore: No plano da macroeconomia de curto prazo, o governo tem um resultado positivo. Houve um ajuste do balanço de pagamentos enorme, mas que se deveu ao choque externo favorável. O Brasil tem superávit em conta corrente, uma dívida externa que é de cerca de 18% do PIB - era 45% em 2002 -, as reservas são de US$ 73 bilhões. A dívida pública interna foi desdolarizada e a dívida externa pública líquida foi zerada. Isso reduz a volatilidade de taxa de câmbio, o que é extremamente importante. O governo manteve o compromisso com os superávits primários e os cumpriu. E é necessário fazer um reconhecimento do papel que o BC desempenhou. O BC foi de fato independente, teve autonomia no uso de instrumentos. Quem olha atualmente para uma inflação convergindo para o limite inferior da meta se assusta um pouco, porque isso está completamente fora do que estávamos acostumados.

Valor: Quais os pontos negativos do governo na área econômica?

Pastore: Os dois pontos mais negativos são a ausência do crescimento e o fato de que a expansão de despesas do governo, de 10% ao ano em termos reais, não é sustentável, apesar do cumprimento das metas de superávit primário. Continuamos necessitando das reformas, como a da Previdência, para produzir a sustentabilidade fiscal.

Valor: O crescimento baixo não vem apenas desse governo. Faz tempo que não vemos taxas robustas.

Pastore: Eu não quero dizer que o Lula acabou com o crescimento. As contas nacionais trimestrais começam em 1991. De lá para cá, a taxa média de crescimento é de 2,56% ao ano. Se você quiser enganar a estatística, pegando um subperíodo em que a capacidade ociosa estava altíssima no começo do período e baixíssima no final, o crescimento é maior do que 2,56%. Se você pegar um subperíodo em que a capacidade ociosa estava baixíssima no começo e altíssima no final, vai crescer menos que 2,56%. Se você pegar o governo Lula, de 2003 até 2006, a taxa é de 3,3%, mas porque começou quando houve a recessão, a recessão de transição de um governo para o outro. Mas isso se deve a variações no grau de utilização de capacidade ou no nível de desemprego.

Valor: O que isso indica?

Pastore: Isso quer dizer que, infelizmente, o crescimento potencial no Brasil é muito baixo. Quais são as fontes de crescimento? Em primeiro lugar, o investimento. Uma taxa de investimento mais alta aumenta o estoque de capital. A China tem todo esse crescimento porque ela tem uma taxa de investimento acima de 45% do PIB. No Brasil, a taxa de investimento a preços nominais está em 20% do PIB. Se você computar em preços reais, está em 17% do PIB, porque houve uma mudança de preços relativos dos bens de capital em relação aos outros bens da economia. Elas são taxas compatíveis com crescimento baixo. A segunda fonte de crescimento é a qualidade de capital humano. Estudos mostram que a situação da qualidade do ensino no país é terrível. Em terceiro lugar, há a produtividade total dos fatores, em que entram um conjunto enorme de coisas, que fazem a economia, com o mesmo estoque de capital e a mesma quantidade de mão-de-obra, ser mais eficiente no uso dos recursos. No Brasil, há uma série de fatores que atrapalham a produtividade, como a burocracia para abrir e fechar empresas, a carga tributária elevada, um mercado de trabalho obstruído. Além disso, nominalmente a proteção tarifária nas importações é baixa, mas há uma série de custos de importação tarifários e não tarifários extremamente altos, que elevam o custo do capital. Nada disso melhorou.

Valor: Por que a taxa de investimento é baixa?

Pastore: Em primeiro lugar, porque nós não temos investimento em infra-estrutura suficientemente alto para contribuir para o aumento da taxa. Não importa se você faz isso por privatização ou por Parcerias Público-Privadas (PPPs). Qualquer um dos arranjos é factível e positivo, dependendo da natureza do problema que você quiser resolver. Mas as duas precisam de estrutura regulatória. Se não houver uma estrutura regulatória apolítica, o setor privado não entra, como não entrou nesses quatro anos. Isso se deve estritamente à inexistência de um marco regulatório que elimine o risco. No caso da energia elétrica, a situação é extremamente grave. Eu tenho visto informações de que, se a economia crescer 4%, você rapidamente seria empurrado para uma situação de escassez de energia. Além da questão do marco regulatório, outro ponto é o problema ambiental. Nós temos que encontrar um meio termo entre a proteção do meio ambiente e a possibilidade de fazer um investimento. Enfim, os investimentos privados não saem se não houver a garantia de infra-estrutura. Eu diria que a primeira reforma é no ambiente regulatório. Eu estou extremamente pessimista em relação a isso, porque eu vejo os pronunciamentos dos ministros do presidente Lula. Eles são absolutamente contrários a esse tipo de questão.

Valor: O que inibe mais o investimento: o ambiente regulatório ou a perspectiva de baixo crescimento?

Pastore: A taxa de crescimento deste governo não variou em relação ao anterior. Quando foi definido o ambiente regulatório no setor de telecomunicações no governo anterior, os investimentos saíram e não há mais problema nesse segmento. Quem inibe é a inexistência de um ambiente regulatório.

Valor: O que mais é importante para mudar esse quadro?

Pastore: Para uma economia crescer, ser eficiente e aumentar a produtividade total dos fatores, é necessário investimento em qualidade do capital humano, em qualidade da educação. O país está gastando uma parcela do PIB relativamente alta, mas com uma qualidade de ensino que é baixíssima. Nos próximos três a cinco anos, o que vai fazer a diferença é o estoque de capital. O capital humano vai fazer muita diferença daqui a dez anos, mas você tem que começar a fazer agora as duas coisas, para nos próximos dez anos acelerar as taxas de crescimento para um nível sustentável acima do que nós estamos hoje. Outro ponto é que o Brasil teria que enfrentar uma liberalização de comércio.

Valor: Como isso deveria ser feito?

Pastore: A idéia do governo é fazer a liberalização multilateral. Se for possível, é a melhor das soluções. Mas a realidade está mostrando que isso é extremamente complexo. Reconhecendo isso, os outros países resolveram pragmaticamente fazer liberalizações por acordos bilaterais, com blocos. O Brasil não fez até hoje nenhum, e todos os acordos que o Brasil tem feito na América Latina ou fora dela visam levar o Brasil ao Conselho de Segurança da ONU e não ao aumento da corrente de comércio. Há um erro crasso na política externa do Itamaraty e dos assessores do presidente. Na verdade, isso tinha que ser feito com o objetivo de estender as ligações de comércio do Brasil com quaisquer parceiros dos quais nós possamos extrair vantagens econômicas e, com isso, trazer mais importações que baixem o custo do capital e permitam aumentar a taxa de investimento. Eu fiquei muito contente quando o ministro Antonio Palocci foi procurar um amigo meu, o Marcos Lisboa (ex-secretário de Política Econômica da Fazenda). É um sujeito que tem uma cabeça arrumada sobre uma agenda de reformas microeconômicas. Com uma cabeça mais para a linha social-democrata, ele sabia que tinha que fazer duas coisas: crescimento e redistribuição de renda. O Marcos pegou essa agenda e levou para dentro do governo. O governo selecionou as medidas que mudam a distribuição de renda, mas não selecionou nenhuma que muda o crescimento. O resultado é um elaborado conjunto de políticas que visam fazer transferências para as classes de renda mais baixa, mas nada no plano do crescimento.

Valor: A redistribuição de renda por si só não poderia dar um impulso ao crescimento?

Pastore: A redistribuição de renda aumenta o bem-estar das classes de renda mais baixas. Isso é um benefício importante, mas ela não aumenta o crescimento. Ela não aumenta nem a qualidade do capital humano, nem a taxa de investimento e nem a produtividade total dos fatores.

Valor: Nem o fato de estar relacionada à manutenção das crianças na escola, como no Bolsa Família?

Pastore: Essa é a única coisa, nesse programa todo, que funciona. Se você tiver que escolher uma política de redistribuição de renda, você tem que escolher aquela que produz esse efeito.

-------------------------------------------------------------------------------- O impacto está se tornando maior exatamente porque há uma percepção de risco de governabilidade" --------------------------------------------------------------------------------

Valor: E ao estimular um mercado consumidor, ainda que de produtos de baixo valor agregado, não há impacto sobre o crescimento?

Pastore: Se você fosse um keynesiano estreito, que dissesse que todo crescimento vem da demanda agregada, você poderia dizer que sim, mas o consumo não entra em lugar nenhum nessa equação. O que entra é a formação bruta de capital fixo. Para uma economia que estivesse abaixo da plena utilização de capacidade, você pode aumentar o consumo que você chega lá. Mas, para uma economia que quer crescer a sua capacidade produtiva, a restrição é de oferta. É por isso que nós estamos olhando apenas o lado da oferta. A solução para isso é acelerar o crescimento e a solução para acelerar o crescimento é ter políticas que estimulem o crescimento

Valor: Quais são essas políticas?

Pastore: Infra-estrutura, reduzir o custo do capital por meio da abertura comercial, fazer a reforma pelo controle do gasto para não aumentar mais a carga tributária, buscar medidas de redução de risco jurídico na execução de garantias. Sem isso, você pode fazer o que quiser com esses pacotes imobiliários que o crescimento dos empréstimos para a habitação vai ser relativamente baixo.

Valor: O sr. vê alguma chance de isso ocorrer num segundo mandato de Lula?

Pastore: Eu não vi ocorrer no primeiro. A melhor estimativa que eu tenho sobre o segundo mandato do Lula é o primeiro mandato. Esse é o temor que está no mercado.

Valor: Há o risco de uma crise fiscal no curto prazo?

Pastore: Não acho que ela esteja no curto prazo, mas acho que no longo prazo certamente se você não fizer o ajuste ela vem. Mas você tem tempo para isso.

Valor: O sr. falou de uma nova rodada de abertura para estimular as importações. O câmbio no nível que está hoje já não faz esse trabalho?

Pastore: O câmbio no nível que está hoje gera um superávit comercial de US$ 43 bilhões. Quando podia ter ocorrido um aumento de importações proporcional à valorização do câmbio, o governo meteu a Cofins em cima das importações, o que aumentou as tarifas. Se algo ocorreu enquanto o câmbio se valorizava, foi um processo de encarecimento de importações.

Valor: Há alguns setores industriais reduzindo a produção devido a perdas nas exportações.

Pastore: Você quer ajustar o câmbio para salvar alguns setores industriais ou você quer descobrir políticas setoriais que permitam ajudar os setores? Se há um setor que saiu do mercado porque não agüenta a competição da China, como é o caso do setor têxtil, você tem que ver o que fazer com o setor têxtil. É possível baixar o imposto sobre o consumo de produtos têxteis, para baixar o preço relativo do setor. É possível fazer um programa de investimento que permita um avanço tecnológico, para reduzir custos. O que não pode é desvalorizar o câmbio no Brasil para atender um setor. Você tem que adotar políticas microeconômicas que corrijam distorções setoriais.

Valor: O que esperar de um eventual segundo governo Lula? Mais quatro anos de crescimento pífio?

Pastore: Se alguém perguntasse em 2002 que o país estaria hoje com um superávit de 1,5% do PIB em conta corrente, provavelmente você não teria nenhuma resposta positiva nessa direção. Não dá para saber o que o mundo vai nos apresentar daqui para a frente, de modo que esses raciocínios são extremamente sujeitos a erros. Isso vai depender um pouco da economia global. As condições serão melhores, por exemplo, se o FMI estiver mais certo sobre o crescimento e os preços das commodities que o Nouriel Roubini (professor da Universidade de Nova York) e o Stephen Roach (economista-chefe do Morgan Stanley), que têm visões cataclísmicas. E também depende um pouco das condições de governabilidade.

Valor: O sr. está preocupado com isso?

Pastore: Acho que todos estão, o mercado manifestou isso. É claro que há um risco externo no meio da história, há uma incerteza na economia global, mas o impacto da incerteza na economia global tem sido maior no Brasil. E não deveria ser, devido ao balanço de pagamentos. O impacto está se tornando maior exatamente porque há uma percepção de risco de governabilidade.

Valor: É possível um programa de redução de gastos de médio prazo, ou é necessário um ajuste rápido?

Pastore: No passado, as reduções de gastos eram feitas com a inflação. Vamos analisar o milagre do Palocci em 2003, quando o governo reduziu a despesa pública de 17,3% para 16,5% do PIB, para depois voltar a crescer. Naquele ano, o núcleo da inflação rodou entre 15% e 20%. No fim de 2003, ele estava anualizado em 10%. No começo, estava em 20%. Isso cortou despesas, com a fixação dos salários em termos nominais. Como hoje há menos volatilidade no câmbio, a probabilidade de a inflação subir é muito menor, não há mais esse mecanismo. Tem que fazer mesmo corte de gastos.

Valor: Isso passa por que tipo de reformas?

Pastore: A reforma da Previdência é a primeira, atacando três pontos. O primeiro é redimensionar o fator previdenciário. O segundo é desvincular a Previdência do salário mínimo, e o terceiro, aumentar a idade mínima da aposentadoria.

Valor: E depois da Previdência?

Pastore: A educação, mas junto. O país gasta 5% do PIB, com a qualidade que nós temos. A impressão é que, com essa qualidade, se conseguiria gastar menos. Se você quiser continuar a gastar o que está gastando, dá para melhorar a qualidade. Mas não é uma tarefa fácil e nem uma tarefa que você vai fazer da noite para o dia. Se você fizer isso nos quatro anos de governo, no fim do quarto ano você tem algum ganho. A primeira coisa é truncar o crescimento da despesa.

Valor: O sr. está pessimista?

Pastore: O Tricolor está indo bem, não posso estar totalmente pessimista. A lei da gravidade continua puxando para baixo. Há uma esperança. Mas há tarefas para as quais não vejo sinais de que soluções estejam sendo endereçadas.

Essa é a terceira de uma série de entrevistas sobre a economia brasileira nos últimos quatro anos e a perspectiva para o futuro