Título: Lei de responsabilidade fiscal precisa ser cumprida
Autor: Valor
Fonte: Valor Econômico, 15/01/2007, Opinião, p. A12

Chamam a atenção, neste início do ano e dos mandatos de 27 governadores eleitos em outubro, notícias sobre dificuldades financeiras vividas por muitos Estados. Além de ressuscitarem o velho pleito de renegociação da dívida que possuem com a União, 21 governadores anunciaram medidas de contenção de despesa, alegando terem encontrado em situação de fragilidade seus respectivos caixas. Alguns foram obrigados a tomar decisões drásticas, como atrasar o pagamento dos salários dos funcionários.

O curioso é que, para os efeitos da contabilidade oficial, os governos estaduais estavam com as contas em ordem até o fim do ano passado. Segundo dados do Banco Central, no período de 12 meses concluído em novembro, os Estados contribuíram com 1,08 ponto percentual do Produto Interno Bruto (PIB) para a meta de 4,25% do superávit primário do setor público consolidado. De acordo com informações levantadas pelo economista José Roberto Afonso, a dívida consolidada dos Estados equivale hoje a 1,4 vez a receita corrente líquida, bem abaixo, portanto, do limite - 2 vezes - estabelecido por resolução do Senado

O problema é que alguns governadores descobriram que seus antecessores lançaram mão de artifícios heterodoxos para maquiar parte das contas, especialmente, as despesas com pessoal. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) estabelece que os Estados podem comprometer até 60% da receita corrente líquida com o pagamento de salários e encargos de seus funcionários. Por esse critério, vários Estados, cuja situação financeira agora está sendo considerada penosa, vinham gastando bem menos que o limite.

Não demorou muito e os especialistas perceberam que, para chegar a números vistosos, alguns governadores usaram de artimanhas para driblar o artigo 18 da Lei Fiscal. Ao registrar os gastos com salários, eles excluíram as despesas com aposentados e pensionistas. Fizeram isso mesmo depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) esclarecer, sem dar margem a dúvidas, que são efetivamente gastos com pessoal os pagamentos a inativos e pensionistas do setor público.

Infelizmente, o desrespeito à lei não é, porém, uma novidade. A LRF, em seu artigo 42, veda a contratação de despesas, nos últimos oito meses do mandato dos governantes, que não possam ser integralmente pagas no mesmo período. Um governador não pode transferir ao sucessor parcela de dívida contraída em seu mandato, sem que haja disponibilidade de recursos no caixa para o pagamento. A Lei de Crimes Fiscais diz que quem descumprir essas regras pode pegar até dois anos de cadeia.

Em 2003, já sob a vigência da LRF, vários governadores constataram que seus antecessores haviam desrespeitado o artigo 42. Sob o silêncio inexplicável dos tribunais de contas estaduais e do Ministério Público, nada foi feito contra os transgressores. Trata-se de uma velha chaga brasileira: a falta do que os americanos chamam de "law enforcement", isto é, o cumprimento da lei, doa a quem doer.

O governo federal também dá sua contribuição ao não cumprimento integral da lei. O artigo 30 da LRF determina que cabe ao presidente da República submeter ao Senado proposta, dispondo sobre limites globais para a dívida consolidada da União. Nem Fernando Henrique Cardoso nem Luiz Inácio Lula da Silva cumpriram a determinação, uma falta incompatível com a necessidade de controle das contas públicas.

Outro artifício, este ainda possível graças à vigência de uma lei orçamentária anacrônica (a 4.320), é o abuso no recurso à rubrica "restos a pagar", do orçamento, como forma de financiar gastos sem extrapolar os limites de endividamento. A União tem rotineiramente lançado mão desse desse instrumento.

A tradição de responsabilidade fiscal no Brasil é recente. Começou, na prática, no último trimestre de 1998, quando, premido por uma forte crise de confiança, o governo central passou a adotar metas de superávit primário. A aprovação da LRF, dois anos depois, foi o passo seguinte, decisivo para institucionalizar o conceito de responsabilidade na gestão das contas públicas. É forçoso reconhecer, no entanto, que chegou a hora de aperfeiçoar os instrumentos jurídicos e fazer cumprir as leis.