Título: A difícil tarefa do Banco Central
Autor: Edward Amadeo
Fonte: Valor Econômico, 01/12/2004, Opinião, p. A11

Já faz parte da rotina do noticiário econômico a TPC -tensão pré-Copom - e as repercussões das decisões do Banco Central (BC), quando empresários e sindicalistas atacam o conservadorismo da política de juros. É evidente que a Selic é importante para balizar o custo do crédito e tem efeito sobre as decisões econômicas. Mas é desproporcional a exigência sobre o que decide o BC em relação à eficácia de seus instrumentos. Tome-se, por exemplo, a relação entre os juros às pessoas físicas e a Selic, que é quase de quatro para um. Ou seja, cerca de 75% dos juros ao consumidor dependem de outros fatores que não da decisão do Copom. Os motivos para tamanha diferença têm sido estudados pelos técnicos do próprio BC, que apontam para o impacto dos impostos sobre as transações financeiras, do peso dos compulsórios e de créditos direcionados e do elevado custo de recuperação do crédito. A oferta e a demanda de crédito na economia brasileira respondem a uma série de outros fatores além da Selic. O gráfico ao lado mostra a diferença em pontos percentuais das taxas de empréstimo para pessoas jurídicas (eixo da esquerda) e pessoa física (direita) em relação à Selic. Períodos de normalização do quadro econômico e político e menor incerteza estão associados a reduções nos spreads entre taxas de empréstimos e a taxa básica do BC. Isso ocorreu ao longo de 2000 e, depois, desde meados de 2003, quando ficaram cada vez mais claras as diretrizes da política econômica. Os juros a pessoas físicas caíram cerca de 20 pontos percentuais desde janeiro de 2003. A Selic está 8,75 pontos menor. Ou seja, para cada ponto de queda do juro básico, o custo do crédito para o consumidor final se reduziu em 2,3 pontos. O spread entre as duas taxas caiu 11,7 pontos. Devido à relativa autonomia do crédito em relação à taxa básica de juros, a situação atual mostra-se peculiar. O BC demonstra preocupação com a possibilidade de excesso de demanda, e essa é uma das razões para a elevação dos juros básicos nos meses recentes. Entretanto, há fatores que fazem o crédito crescer, e não diminuir. O nível de inadimplência está muito baixo, emprego e renda estão crescendo e a confiança do consumidor está em seu patamar mais elevado desde 1994. Além disso, os bancos têm incentivos para reduzir os juros na disputa por fatias do mercado de crédito, e bancos oficiais, como o BNDES, criam linhas especiais de crédito de capital de giro a taxas insensíveis ao juro básico. Nesse cabo de guerra, está o BC de um lado, e tudo o mais do outro. Tanto é que os juros para tomadores finais não aumentaram nos últimos dois meses, desde quando o BC elevou a Selic. Talvez alguma reação venha nos próximos meses, mas as forças por trás das variações dos spreads entre as taxas finais e básica têm se mostrado fortes o suficiente para compensar o aperto monetário, atestando a importância dos outros determinantes do crédito.

A dinâmica do crédito e da demanda, assim como das expectativas, não depende apenas do que se decide na reunião do Copom

É interessante que, desde que o BC iniciou o processo de elevação da Selic, a mediana das expectativas de crescimento industrial para 2005, segundo a pesquisa Focus, do BC, cresceu de 4,03%, no início de outubro, para 4,50%, na semana passada. Ou seja, ao mesmo tempo em que o BC mostra-se preocupado com a possibilidade de excesso de demanda, e eleva a taxa de juros, os analistas privados revêem para cima suas expectativas de crescimento da economia no ano que vem. Ou seja, BC e mercado vêem sinais claros de aquecimento da economia. É possível que a previsão de crescimento do produto industrial do próximo ano seja revisto para baixo - digamos que volte para a casa dos 4% - a partir do discurso mais duro e da ação do Copom. Variações dessa ordem de magnitude não autorizam a visão de que a política monetária estaria botando a perder a recuperação da economia ao induzir as empresas a postergar decisões de investimento - talvez antes pelo contrário. Isso por dois motivos. Primeiro, as decisões de investimento dependem da visão dos empresários sobre o desempenho da economia nos próximos cinco a dez anos. Segundo, porque essa mesma percepção depende da confiança nas ações do BC para manter a inflação sob controle, o que reduz a volatilidade de variáveis-chave, como a taxa de câmbio e o nível de demanda agregada. Em resumo, a dinâmica do crédito e da demanda, assim como das expectativas, depende de outros fatores, e não apenas do que se decide entre quatro paredes na reunião do Copom. E, ainda assim, o Copom tem a obrigação de cumprir o seu papel, que é manter a inflação em linha com a meta. Essa análise sugere uma dose de parcimônia nas críticas ao BC face à limitação de seus instrumentos. Diante de choques de oferta, indexação de tarifas, elevada volatilidade dos fluxos de capital, rigidez fiscal e desconhecimento da dinâmica da demanda, a tarefa do BC é muito difícil. Os juros no Brasil são elevados: a Selic real é de 10% e os juros para tomadores finais pessoas físicas, 53%. Essas taxas dependem de fatores estruturais e institucionais, como escassez de poupança doméstica, elevada dívida pública, incerteza jurídica associada a contratos. Desde que o BC resolveu elevar juros em outubro, a alta foi de 0,75 ponto percentual. Onde está o problema, no nível da taxa de juros ou na elevação dos últimos dois meses? Nada do que está escrito acima reduz a relevância das discussões sobre o papel da política monetária: as metas de inflação, como agir diante de choques de oferta, o peso dos preços administrados, os pressupostos e metodologia de ação do BC, os efeitos dos juros sobre a dívida pública. Mas talvez chame atenção para um conjunto de outras variáveis -algumas sob controle do governo, mas não da autoridade monetária - cujo efeito sobre o desempenho da economia é muito maior que aquele da política monetária.