Título: Minha Casa Minha Vida e o FGTS :: Pedro Ferreira e Renato Fragelli
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/08/2012, Opinião, p. A15

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) foi instituído em setembro de 1966, durante o governo Castelo Branco, como compensação concedida aos trabalhadores celetistas pela eliminação do antigo estatuto da estabilidade no emprego (EEE) alcançada após dez anos de serviço na mesma empresa. Com um depósito mensal de 8% do salário a encargo do empregador, o trabalhador celetista passou a receber anualmente um 14º salário equivalente a 104% (= 8% x 13) do salário mensal.

O fim do EEE eliminou uma grande fonte de ineficiência econômica, pois as empresas, para escaparem de possíveis acomodações estimuladas por aquela regra, demitiam seus funcionários pouco tempo antes de eles atingirem o teto de dez anos. Perdiam-se, dessa forma, preciosos anos de experiência profissional, acarretando-se redução da produtividade do trabalho e, consequentemente, queda de salário real. Além de gerar uma nova fonte de poupança de longo prazo para financiar obras de saneamento e habitações populares, o FGTS permitiu a muitos trabalhadores adquirir uma moradia, bem como formar um pecúlio para a aposentadoria e períodos de desemprego.

Por que trabalhadores celetistas custeiam o programa habitacional e os que não tem direito a receber o FGTS não?

Inicialmente, os recursos recebiam correção monetária integral, acrescida de juros reais entre 3% e 6% ao ano, em função do prazo de permanência no mesmo emprego. Posteriormente a regra foi modificada, fixando-se a taxa real de juros em 3% ao ano. Durante os anos de elevada inflação, sobretudo naqueles em que houve choques heterodoxos, os depositantes do FGTS sofreram perdas em relação à inflação, o que levou a acirradas disputas judiciais.

Entre o lançamento do Plano Real e a adoção da flutuação cambial em janeiro de 1999, diante da elevadíssima taxa real de juros paga pelo Tesouro aos aplicadores em títulos públicos, concedeu-se ao FGTS uma rentabilidade real de 8,6% ao ano - veja tabela. Posteriormente, devido à mudança da fórmula de cálculo da Taxa Referencial (TR), que deixou de ter qualquer vínculo realista com as taxas de mercado e/ou com a inflação, a rentabilidade do FGTS ficou sistematicamente abaixo da inflação. Nos doze anos compreendidos entre junho de 2000 e junho de 2012, a perda real acumulada do FGTS atingiu 16,2%, o que corresponde a uma taxa real de juros negativa de -1,46% ao ano.

Somente ao longo do governo Dilma Rousseff, a perda acumulada no FGTS alcançou 1,47%. Se os recursos depositados no FGTS fossem geridos pelos mesmos critérios que balizam as aplicações dos fundos de pensão, teriam alcançado rendimento real de 5,5%, e não -0,9%. Pode-se interpretar a diferença de 6,4% ao ano como uma alíquota de imposto que incide sobre o saldo de cada trabalhador celetista no FGTS. Os demais trabalhadores do setor formal da economia, tais como profissionais liberais auto-empregados, servidores públicos e empresários, por não terem recursos compulsoriamente aplicados no FGTS, são isentos desse imposto.

Se os trabalhadores celetistas perdem ao serem obrigados a manter recursos tão mal investidos, para onde vão os recursos? No momento, um dos principais beneficiários da equação financeira do FGTS são as famílias modestas que recebem subsídios do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV). Juntamente com o Bolsa Família, o MCMV é um programa social excelente, pois concede subsídios a pessoas realmente pobres, ao contrário dos créditos subsidiados concedidos à larga por vários bancos de fomento - BNDES, Banco do Nordeste, Banco da Amazônia e outros - a grandes empresas. Não se questiona aqui o destino dos subsídios, mas sim sua origem: por que um grupo de brasileiros - os trabalhadores celetistas - é forçado a custear o MCMV, enquanto outros - profissionais liberais, servidores públicos e empresários - não carregam parte desse fardo com tão nobre destinação?

Neste sentido parece-nos socialmente mais justo que os subsídios para o MCMV sejam pagos pelo Tesouro - isto é, por todos os brasileiros -, e que os recursos do FGTS voltem a ser reajustados em termos reais, não mais se punindo uma extensa classe de trabalhadores.

Além da injustiça em relação aos celetistas, o rendimento real negativo do FGTS estimula a rotatividade no trabalho, pois a demissão sem justa causa permite a liberação dos recursos para que sejam mais bem investidos em outra aplicação. Não raros são os casos em que o trabalhador, ao ver seu saldo ser corroído pela inflação, em conluio com seu empregador, simula uma demissão sem justa causa para poder sacar seu saldo do FGTS. Nesses casos, a multa rescisória é devolvida pelo trabalhador demitido ao empregador que logra, por esse mecanismo, retirar recursos da empresa sem que sejam tributados.

A intervenção governamental na intermediação financeira brasileira tem levado as distorções ao paroxismo. Enquanto os tecnocratas do BNDES escolhem ganhadores, os da CEF escolhem perdedores. O que surpreende é que nem os representantes dos trabalhadores no conselho curador do FGTS (seis centrais sindicais) e muito menos os partidos de oposição tenham se posicionado contra isso.

Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso são professores do pós graduação da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas (EPGE-FGV)