Título: A amarga injustiça do mensalão
Autor: Rodríguez , Víctor Gabriel
Fonte: Valor Econômico, 24/08/2012, Política, p. A5

É possível observar que a cobertura jornalística do mensalão tem aumentado, ou ao menos deixado mais visível, a distância de pensamento entre opinião pública e juristas. Enquanto a primeira observa as transmissões do julgamento com algum ceticismo e um constante sabor de injustiça, os últimos assistimos às sessões, na íntegra, encantados e com raríssimos momentos de desilusão. O início da condenação de réus, principalmente na toada do relator, talvez diminua essa polarização - se aceitamos o pressuposto óbvio de que a sociedade pede uma resposta penal à corrupção - mas ainda não o suficiente. Mesmo sabendo que posso pintar um quadro muito comprometido com minhas próprias impressões, é possível tentar refletir sobre a origem desse abismo.

Talvez o jurista não note e a opinião pública não verbalize que o que aparenta muito desigual no tal julgamento não é seu resultado, que sequer conhecemos, mas seu transcorrer. Aos olhos do jurista, um verdadeiro espetáculo como a aprofundada fundamentação, no voto do revisor, para desvelar o que seja a prática publicitária dos "bônus de volume", à experiência do leitor pode soar quase ofensivo: um cidadão que vivenciou, no fórum, audiências separadas por intervalos de 20 minutos teria como razoável sonho utópico ver o juiz discutir seu caso em uma sessão de um mês inteiro, com atenção milimétrica a cada testemunho ou conceito científico. Da mesma forma, as grandes corporações há muito clamavam aos membros do Judiciário a compreensão de que nem todo lucro milionário é em essência criminoso, e muitos empresários sabem o quanto é truncada a conversa com o juiz sobre fluxo de valores, investimentos ou acerca de estratégias, legítimas aos olhos do mercado e da lei, para fugir a tributos sufocantes. Especialmente quando o interlocutor está sentado no incômodo banco dos réus. Se acrescentamos que, nesses casos ordinários, à acusação antecede uma operação policial em molde naturalmente inquisitivo e, para ser eufêmico, não-dialógico, o sentimento de desigualdade surge ainda maior.

Agrava-se o quadro se ousamos conduzir o pensamento para a prática da repressão penal não-empresarial: enquanto especialistas justificam a delicadeza no trato com a Ação Penal nº 470 pelo argumento de que ela interfere no que o indivíduo tem de mais valoroso, a sua liberdade, aos demais segue latente que autoridades de distritos policiais de bairro detêm cidadãos em jaulas desumanas, só para colocá-los "à disposição da Justiça". No país em que quem furta pouco é ladrão, pensará o assim chamado "leigo", a privação da liberdade dos comuns antecede a qualquer argumento jurídico. Essa discussão, claro, se prolongada tangenciará a demagogia, mas já é suficiente para terminarmos o primeiro ponto: o jurista, quando expressa seu pensamento à opinião pública, deve fazer concessão ao que aqui resumo em linguagem jurídico-filosófica: o procedimento do Supremo Tribunal Federal (STF), formalmente justo, pode, em outra perspectiva, ser materialmente muito desigual.

Mas também cabe à opinião pública compreender que o mensalão não é um julgamento comum (como se houvesse um "julgamento comum") apenas porque envolve autoridades. Ele é diferenciado porque ocorre imediatamente no Supremo. Isso importa em dizer que o processo originário, como essa ação penal, tem a vantagem extrema de já se iniciar na Corte cuja função, muito mais que nas outras, é a de assegurar as grandes liberdades constitucionais. É isso, por exemplo, que explica porque, ao menos de início, nenhum réu se queixe por ver seu processo agraciado com tal privilégio de foro: sabe que dificilmente o Supremo lhe negará o direito a produzir uma prova ou decretará uma prisão cautelar, bem ao contrário de outros tribunais. Dizer o inverso seria ignorar, entre outros dados, que o STF concede quase a quarta parte dos habeas corpus que ali se distribuem (porcentagem elevadíssima), ou a grande maioria das ações de inconstitucionalidade que estejam regularmente instruídas.

A origem do problema é em parte política, em parte econômica: a maioria dos mortais não desfruta o privilégio de foro supremo, nem pode contratar defensores que iniciam seu discurso de tribuna dizendo que foram pessoalmente os responsáveis por alçar o próprio acusador ao cargo mais elevado da carreira. Esse é um quadro socialmente desigual, que via de regra não escapa ao jurista, mas tampouco lhe ocupa muito tempo de reflexão; como profissional, ele não pode desatender ao conselho de que a arte do cientista, como a do toureiro, é a de saber manter calculada distância do objeto. Sob essa ótica, tem a obrigação de fazer a opinião pública entender que um procedimento não deve ser predicado de injusto por ter justiça demais, já que esta nunca ocorre em excesso. Como cidadão, entretanto, confesso que calar-se sobre o tal paradoxo é tarefa bastante amarga.

Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de direito penal da Universidade de São Paulo (USP/FDRP) e membro da União Brasileira de Escritores