Título: Rapa Nui, a ilha mais ilha do mundo
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 09/01/2007, Eu & Investimentos, p. D4

O galo canta a plenos pulmões e uma espiada pela janela confunde quem acaba de acordar: roseiras nos canteiros, uns hibiscos e céu de garoa. Poderia ser qualquer lugar, mas não há nada de comum por lá: é Páscoa, a ilha mais remota do planeta, a ilha mais ilha do mundo, talvez a mais misteriosa. Páscoa para o mundo globalizado, Rapa Nui para o povo polinésio que vive numa terra que é um triângulo de proporções cabalísticas e com um vulcão em cada vértice.

Ninguém sabe nada muito ao certo sobre a ilha. É vago assim, Rapa Nui não funciona por planilhas de Excel. Talvez isso explique o fascínio que sentem tantos europeus e norte-americanos que vão conferir as mais de 900 estátuas gigantes que fazem a fama de Páscoa, os moai, e acabam como os gigantes de pedra, ficando por lá. Hoje vivem no território de 170 km2, a 3800 km do Chile, umas quatro mil pessoas e um montão veio de longe. Ou são "continentales" (como os rapanui chamam, com discreto desdém, seus compatriotas chilenos) ou têm nacionalidades diversas, mas todos hipnotizados pelo lugar. "É divertido, isolado de tudo", diz Francisco Peña, o chef chileno do hotel Explora em Páscoa. Ele foi fisgado pelo jeito de cozinhar peixes em rocha vulcânica, pelos horizontes amplos e por Carmen Tuki, a rapanui com quem se casou. "Aqui é um país diferente, não é Chile, tem seu próprio idioma", diz Francisco, interrompido por alguém que passa e solta um "Iorana". É como na Itália - "Iorana" é uma espécie de "ciao", serve para quem chega e para quem vai.

No "umbigo do mundo", a tradução literal de Te Pito Te Henua, nome que a ilha recebeu de seus primeiros habitantes, os nativos falam espanhol, mas entre si só em rapanui. Sentem-se mais polinésios do que chilenos (embora a ilha pertença à região de Valparaíso), têm orgulho de suas tradições e respeito pelos moai. Nenhum ousa pisar sobre as plataformas de pedra, os ahu, altares onde ficavam as estátuas, a representação monolítica de seus ancestrais.

A história de Páscoa é uma biografia coletiva que os rapanui repassam como escutaram dos pais e avós. Faltavam uns 1100 anos para Cabral descobrir o Brasil quando sete exploradores vieram dar na ilhota. Depois chegou mais gente, e o rei Hotu Matu´a. Eram, se acredita, de algum lugar da Polinésia. Eles se distribuíram pela área em diferentes clãs. A ilha é arqueologia por onde se ande: pedras empilhadas eram galinheiros, torres que funcionavam para olhar as estrelas, ahus por todo lado. Duas raças predominaram, a dos orelhas grandes e a das orelhas curtas. Uma submetia a outra, que fazia moai para cultuar os líderes da classe dominante. Durante 200 anos, entre 1400 e 1600, Páscoa foi tomada pela febre dos ícones. Alguns chegam a ter 20 metros de altura e todos pesam toneladas. O berçário dos moai era o vulcão Rano Raraku, lugar soberbo de onde se vê a ilha, o Pacífico e umas 400 estátuas, muitas ainda entalhadas nas encostas. Estavam a caminho da costa, a 20 quilômetros dali.

Este é um dos mistérios da ilha - como os pesos-pesados foram levados para tão longe e erguidos sobre plataformas de pedra em eras pré-guindastes? Quase não há árvores em Páscoa, o que dá uma boa pista. Os moai foram levados, provavelmente, com cordas e troncos de árvores. Muitos troncos de árvores depois, num domingo de Páscoa de 1722, o holandês Jacob Roggeveen "descobriu" a ilha. Dizem que chegou na penumbra e, apavorado com as silhuetas gigantes que viu, resolveu desembarcar no dia seguinte, à luz do dia. Mais 50 anos e foi a vez do capitão inglês James Cook aportar. Seu relato é de muitos moai pelo chão. Tempos depois, estavam todos espatifados.

A fúria iconoclasta sugere uma guerra civil tenebrosa. A vaidade religiosa pôs em risco o ciclo da vida - a construção de moais acabou com as árvores; sem árvores não havia mais barcos para pescar, sem barcos faltaram peixes, a comida rareou e o resto é só imaginar. A versão hollywoodiana está no filme de Kevin Costner. O livro do padre alemão Sebatián Englert ("La Tierra de Hotu Matu´a") é obrigatório para quem quer entender alguma coisa. Ele viveu ali, estudou detalhadamente a cultura rapa nui, virou nome do museu. Os 15 mil rapanui no auge de sua civilização foram quase extintos. Para piorar, receberam visitas de toda sorte de piratas, e milhares foram levados como escravos para o Peru. Voltaram os que escaparam da lepra e tuberculose. A população se reduziu a 111. Quem sabia ler a escrita Rongo-Rongo, morreu. Só as lembranças contam a história.

Divulgação Não é todo dia que se vê algo assim: Páscoa é um triângulo de proporções cabalísticas com um vulcão em cada ponta O primeiro giro pela ilha exibe os fatos recentes. Uma longa cerca de pedra faz com que Páscoa pareça a Irlanda. É a cicatriz contemporânea da história da ilha, que passou para o Chile em 1888. Mas, de novo, os rapanui não foram muito bem tratados. A ilha foi arrendada a um lanifício inglês que mandou a população erguer a tal cerca de pedra, concentrou o povo a seu pequeno vilarejo, Hanga Roa, e deixou todo o resto às ovelhas. Não há mais ovelhas em Rapa Nui. Sobraram os cavalos ingleses que se reproduziram aos milhares, a cerca, e os ilhéus ainda concentrados em Hanga Roa. Mas Páscoa, hoje, tem a cara do paraíso. Virou monumento mundial da Unesco, a maior parte da terra é Parque Nacional e seduz, pelo mistério e pela beleza, quem visitar aquele rincão do Pacífico. É a opção de 40 mil turistas ao ano, do mundo todo.

Os moai estão para Rapa Nui assim como as pirâmides para o Egito. Basta o avião pousar e já começa a coceira de topar logo com um deles - segure a ansiedade, são mais de 900. A viagem dura cinco horas e meia desde Santiago. É trajeto monocromático, de azul por todo canto, uma preparação para a alma. Os turistas são recebidos com colares de flores e uma olhadela nos nativos revela que aquilo é Chile só no papel - homens e mulheres, todos têm vasta cabeleira e traços polinésios. Está na cara.

O aeroporto fica a poucos metros das duas casas do Explora, o grupo chileno com hotéis na Patagônia e no Atacama que são hit entre viajantes de espírito livre loucos para se conectar com pontos remotos do planeta. O Explora leva o nome a sério e quem chega ao meio-dia já tem sua primeira aventura à tarde, depois do primeiro pisco sauer e empanadas deliciosas. A caminhada mal começa e o guia Singa Pakarati aponta uma pedrona no mato. A visão do primeiro moai, a cara para o chão, é melancólica. Virão muitos outros assim, destroçados. Mas à medida em que a rota se aproxima do vulcão Rano Raraku, a oficina dos moai, a visão é emocionante. Todos têm os braços ao lado do corpo, são barrigudinhos, os lábios finos e a expressão emburrada. Mas não há um igual ao outro.

A única moai mulher está no museu, assim como tábuas com a escrita indecifrável. Plataformas com moai restaurados exibem estátuas com uma espécie de chapéu - ou coroa ou cabelo, depende de quem explica. É o pukau, uma peça circular de rocha vermelha que pesa uma barbaridade: erguê-la sobre as estátuas era como levantar dois elefantes no braço. Muitos moai foram recolocados em pé, estão na costa e sempre olham para o interior da ilha - acredita-se que velavam as aldeias aos pés do altar. A única exceção é o Ahu Akivi, no centro de Páscoa, com sete moai olhando para o mar. Representam os exploradores enviados pelo rei.

Em Hanga Roa não há placas na rua. Mas se perder pelo povoado é improvável. Tem uma igrejinha, o cemitério é de lápides coloridas, e, no mercado, entre peixes e frutas, barracas vendem mini moai em pedra ou madeira e estatuetas do homem-pássaro. Aí vem outra história forte da cultura rapanui.

A guia Uri Avaka Teao faz o grupo sentar sobre as pedras do vulcão Rano Kao e vai contando. À esquerda estão as construções da aldeia cerimonial Orongo, e à frente, três ilhotas. Ali se celebrava o culto ao homem-pássaro, uma homenagem ao deus Make Make. Jovens de várias tribos recebiam uma missão espinhosa: atirar-se do penhasco, enfrentar um mar de tubarões, escalar uma das ilhas, achar o primeiro ovo de uma certa ave, fazer o caminho de volta e trazer o tal ovo, intacto, para o chefe. Por um ano, ele se tornava o poderoso local. Depois de doze meses, tudo de novo, ovos e tubarões. Eram democráticos os ancestrais dos rapanui.

A cratera de 1,5 km de diâmetro é uma visão espetacular. Concorre em magia com a Península de Poike onde há outra lenda - talhada no monte, a figura de uma mulher. "Ela morreu de tristeza procurando os dois filhos", conta Uri. As falésias próximas estão cheias de grutas com petroglifos. De cima do monte se vê o manto agreste, as vacas e os cavalos de sempre. Não há turistas, só gaviões que dão rasantes para avisar que o ninho está por perto. Uri se levanta, caminha mais um pouco, e indica dois pequenos moai: "São os gêmeos", diz.

O almoço é em Anakena, uma das duas praias da ilha. Sob os coqueiros, com vista para o Ahu Nau Nau e o mar prateado, os guias preparam um piquenique que tem até ceviche de camarão. O mantra do Explora para o pós-caminhada - uma boa ducha, uma boa comida e uma boa cama - pode ser espaçado quando no programa está a ida ao show de danças típicas, num hotel de Hanga Roa. É um momento ula-ula, com moças de tops de casca de côco e moços em saias de palha, e os movimentos alternam ondinhas com os braços a passos enérgicos. Se sobrar fôlego, estique até o Topatangi, um dos bares que os rapanui freqüentam, pequeno, autêntico e com música ao vivo.

A próxima jornada pode iniciar em Tongariki, o maior dos ahu, com 15 moai. Não é todo dia que se vê algo assim. Depois, uma caminhada ao longo da costa garante outras descobertas - ouriços enormes, pedaços de obsidiana que parecem cacos de vidro negro, altares aqui e ali e o Pacífico por testemunha. O marketing do Explora diz que o importante não é chegar ao destino, mas o que acontece durante o percurso. Quem gosta de passar as férias vendo vitrines precisa de outra opção. Ali, o bom é ter sapatos confortáveis, uma capa de chuva e filtro solar na cara. E o espírito aberto.

Em Páscoa o magnetismo é literal. Os nativos falam no mana, a energia mística da ilha. Te Pito Kura, uma pedra arredondada de meio metro, é de perder o Norte: leve bússola e teste. Na volta, é meio lento reconectar à vida de e-mails e celulares. As imagens daqueles gigantes de pedra com sorriso de Mona Lisa teimam em ficar grudadas na memória.