Título: Mínimo, desenvolvimento e política econômica
Autor: Dedecca, Claudio
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2007, Opinião, p. A8

O encaminhamento da proposta orçamentária para 2007 do governo federal ao Congresso Nacional marcou a retomada da discussão sobre o reajuste anual do salário mínimo. A questão acabou ganhando rapidamente ampla dimensão política, devido às expectativas desfavoráveis de crescimento do PIB para 2006, que levou o governo federal a rever a proposta orçamentária e o valor proposto para o salário mínimo em 2007. A estimativa original, de R$ 375, foi substituída por outra de R$ 367.

A perspectiva de um aumento real menor para o salário mínimo no próximo ano estimulou a ação das centrais sindicais, que prontamente reafirmaram a reivindicação de um reajuste para o patamar de R$ 420 e pressionaram o governo federal para que se iniciasse o processo negociação.

A emergência da possibilidade de um reajuste menor para o salário mínimo, segundo a variação dos preços mais aquela do PIB per capita em 2006, gerou constrangimentos para o governo e tensões em seu interior, em razão dos compromissos passados que certas áreas assumiram a favor de uma política de valorização permanente do piso legal.

Foi deflagrada a negociação entre governo e centrais sindicais sobre o valor do salário mínimo a partir de abril de 2007, que resultou em um acordo que estabeleceu o novo piso em R$ 380 e a adoção de uma política de valorização que garante, ao menos, a sua atualização segundo a variação dos preços mais aquela do PIB.

O acordo estabelecido recentemente sobre salário mínimo foi marcado por uma característica já presente em 2005: o reconhecimento pelo governo, pelo Congresso e pelas centrais sindicais da importância do piso legal e da necessidade da sua valorização. Ademais, esta convergência de posições não veio acompanhada da defesa da desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo.

Ao contrário, o governo tem apontado que uma melhora da gestão do regime geral da Previdência, em um contexto de crescimento econômico, permitiria que ele absorvesse o aumento da despesa com benefícios associada à elevação do salário mínimo, ao menos até 2010.

Pode-se dizer que se encontra em consolidação um cenário para a política de valorização do salário mínimo e de tratamento das restrições encontradas pelo regime geral de Previdência distinto daquele que teve predominância na política pública nos últimos 15 anos, o que tem deixado nervosos os defensores obsessivos do ajuste fiscal via um corte dos gastos com as políticas sociais.

Depois de um longo período, parece que começa ganhar legitimidade, dentro e fora do governo, a perspectiva de uma reorganização fiscal de natureza dinâmica. Isto é, onde o crescimento e a queda da taxa de juros, em conjunto com uma melhor gestão orçamentária, alicerçariam a redução dos gastos correntes do governo federal sem o comprometimento da política social. Ademais, a proposição coloca em segundo plano as reformas estruturais, seja em razão das dificuldades ou da quase impossibilidade política de fazê-las, seja devido à constatação de que as diversas já realizadas não cumpriram suas promessas.

Existem sinais crescentes de construção de uma posição socialmente representativa que questiona as razões que impedem a adoção de uma política econômica com características distintas daquelas que prevaleceram no país desde o início dos anos 90. Ou melhor, por que não buscar superar as dificuldades no campo fiscal através do crescimento, cuja política decorreria de uma redução mais acentuada da taxa de juros? Ou ainda, por que não procurar uma estratégia que permita restabelecer o crescimento sem uma agenda de reformas radicais e que seja marcada por mudanças continuas da regulação e das políticas públicas, sem regressão da política e da proteção social?

-------------------------------------------------------------------------------- Depois de um período longo, a perspectiva de uma reorganização fiscal de natureza dinâmica começa a se legitimar --------------------------------------------------------------------------------

Em outras palavras, o que impede o país de alterar o fluxo de riqueza entre os agentes ou segmentos econômicos no curto prazo, privilegiando a produção e o consumo? E fazendo destes os elementos indutores do crescimento e do desenvolvimento?

Em termos objetivos, não existe nenhuma razão para não se proceder a mudança da política econômica. Excetuando-se a situação da taxa de câmbio valorizada, todos os demais indicadores econômicos macro são positivos. Taxa de inflação próxima à metade da meta, bom desempenho das exportações mesmo com taxa de câmbio valorizada, reservas monetárias consideráveis, endividamento externo desprezível e déficit real do setor público sob controle. Jamais o país se encontrou em uma situação econômica semelhante desde 1822.

O único argumento esgrimido pelos defensores da política econômica atual é a ameaça de uma aproximação da inflação à meta decorrente de uma flexibilização da política monetária. Pois bem, é perfeitamente adotar a flexibilização e, caso a inflação volte a crescer, seja feita a reavaliação da estratégia. Que pecado ou risco esta perspectiva traria para o país? Nenhuma.

A flexibilização permitiria estabelecer uma perspectiva mais ampla em relação às diversas dimensões das políticas econômica e social, rompendo o aprisionamento destas em relação à política monetária. Seria aberto espaço para uma discussão mais conseqüente sobre o salário mínimo, em razão de se poder debater como, segundo taxas distintas de crescimento, sua valorização afetaria os gastos, mas também as receitas dos orçamentos da Seguridade Social e das diversas esferas de governo.

Merece ressaltar, a título de exemplo, que o gasto com o regime geral de Previdência Social teria ficado estável caso o país tivesse crescido a média de 5% desde 1995. O incremento observado do gasto decorreu fundamentalmente do desempenho medíocre da economia ao longo desses anos. Ademais, a despesa adicional com a dívida pública decorrente das taxas de juros exorbitantes, impostas pela soberania da política monetária, é diversas vezes superior à elevação da despesa com a Previdência induzida pelos aumentos do salário mínimo.

Ao invés de um enfoque de natureza estática centrado em uma relação direta, limitada e injustificável entre aumento do salário mínimo e incremento dos gastos com benefícios, se transitaria para um outro de natureza dinâmica, que olharia a relação considerando outras variáveis como o aumento do produto, do emprego e da renda.

A relutância dos defensores da política econômica atual em relação a esta perspectiva se deve ao fato da mudança obrigar que a sua gestão perca autonomia e, portanto, poder na definição da política de governo. O ataque ao salário mínimo e, também, à política social nada mais representa que a defesa do fundamentalismo da atual política econômica, em especial da monetária, e o poder que ela confere a um conjunto restrito de interesses pessoais e econômicos.

Neste sentido, é decisivo apontar que alterar a atual situação de subordinação das demais políticas à econômica, por uma outra caracterizada pela articulação entre elas, representará um avanço da democratização das políticas públicas, pois significará ampliar o conjunto de interesses que determinará os rumos do país. Esta mudança de rota é, sem dúvida, dolorosa para uma gestão da política econômica definida por um grupo restrito de pessoas e de interesses à revelia da nação. Porém, dificilmente a democracia avançará e o desenvolvimento com justiça social poderá ser estabelecido sem que se rompa essa quadratura restrita de poder.

Claudio Salvadori Dedecca é economista e pesquisador do Centro de Estudos de Economia Sindical e do Trabalho (Cesit), da Unicamp.