Título: Regulação ou inovação no setor elétrico?
Autor: Marchi , Gustavo De
Fonte: Valor Econômico, 05/09/2012, Legislação & Tributos, p. E2

A Medida Provisória nº 577, de 29 de agosto de 2012, em momento de plena discussão quanto a possibilidade das concessionárias de serviço público de energia elétrica se socorrerem do instituto da recuperação judicial ou extrajudicial, parece apenas regulamentar e esmiuçar a disciplina da extinção e intervenção das concessões de serviços públicos de energia elétrica. Mas não é só.

De fato, é inegável que a medida apresenta de forma detalhada os procedimentos para a extinção e intervenção nas concessões, o que é benéfico para o setor elétrico ao tornar o procedimento mais transparente e, portanto, neste aspecto, com mais segurança jurídica.

Na extinção das concessões, a MP se limitou a prever a prestação do serviço de forma temporária pelo poder concedente, por meio de órgão ou entidade da administração pública federal, até que seja contratado um novo concessionário por licitação nas modalidades leilão ou concorrência. Quanto às obrigações assumidas pela sociedade titular da concessão extinta, a medida é clara quanto à não assunção de qualquer responsabilidade pelo poder concedente. Já o novo concessionário deverá assumir as obrigações contraídas pelo órgão ou entidade que prestar o serviço temporariamente.

No entanto, no que se refere à intervenção, cabe destacar que a MP não só regula como inova no ordenamento jurídico do setor elétrico brasileiro, o que se constata com o afastamento da aplicação dos artigos 32 a 34 da Lei Geral de Concessões nº 8.987, de 1995, trazendo sistemática própria (e em alguns aspectos até bem próxima da referida lei) acerca deste instituto, especificamente para as concessões de serviço público de energia elétrica.

A intervenção fica a cargo da Agência Nacinal de Energia Elétrica (Aneel) e não do poder concedente. O órgão regulador é o responsável por declarar a intervenção, instaurar o processo administrativo e concluí-lo no prazo de até um ano (na Lei Geral de Concessões nº 8.987, de 1995, são 180 dias), nomear o interventor e fiscalizar todo o período da intervenção.

A MP suscitará discussões jurídicas, seja no conteúdo formal ou material

Cumpre informar que a disciplina da intervenção traz pontos positivos, dos quais merecem ser destacados: (i) a não aplicabilidade dos artigos 6º e 10º da Lei nº 8.631, de 1993, que vedavam o recebimento de valores ou aplicação de revisão/reajuste tarifários para as empresas inadimplentes; e (ii) a possibilidade da Aneel estabelecer regime excepcional de sanções regulatórias durante o período da prestação temporária do serviço ou da intervenção.

Mas outros pontos merecem atenção especial. O interventor possui plenos poderes de gestão sobre as operações e os ativos da concessionária e a prerrogativa de convocar a assembleia-geral apenas nos casos em que julgar conveniente. Ou seja, sofre controle, de fato, apenas da Aneel, a quem deve prestar contas. E ainda prevê que os administradores respondem solidariamente pelas obrigações assumidas pelas concessionárias durante sua gestão, sem qualquer ressalva, inaugurando novo tratamento diverso do que dispõe a Lei nº 6.404, de 1976, no qual o administrador não responde pessoalmente pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão, respondendo apenas civilmente pelos prejuízos que causar quando proceder com culpa ou dolo ou com violação da lei ou do estatuto.

Adicionalmente, a MP torna automaticamente indisponível todos os bens dos administradores das concessionárias sob intervenção ou cuja concessão seja extinta, não podendo aliená-los ou onerá-los por qualquer forma até a apuração e a liquidação final de suas responsabilidades, operando uma antecipação provisória de responsabilização do administrador de forma automática, o que também difere da sistemática da Lei nº 6.404, de 1976. E mais, essa indisponibilidade afeta bens de contrato de alienação, de promessa de compra e venda e de cessão de direito levado a registro público nos doze meses anteriores à data da declaração da intervenção ou extinção.

Outra questão digna de destaque é o fato de a Medida Provisória ser direcionada especificamente para o setor de energia elétrica, sem abarcar as demais modalidades de serviços públicos concedidos igualmente essenciais. Considerando que a possibilidade de caducidade da concessão ou falência de determinado concessionário existe em qualquer serviço público, com previsão expressa na Lei de Concessões nº 8.987, de 1995, resta saber qual é a razão para o tratamento específico ao serviço público de energia elétrica que justifique tal fato sem afronta ao princípio da isonomia. Outra dúvida é se a mesma inaugura ou não um conjunto de medidas para tratamento das concessões a vencer a partir de 2015. Não podemos esquecer que o fantasma do vencimento das concessões ainda paira no ar.

Por fim, exclui a aplicação dos regimes de recuperação judicial e extrajudicial previstos na Lei nº 11.101, de 2005 às concessionárias de serviços públicos de energia elétrica, salvo após a extinção da concessão.

Sem nos filiar a nenhuma corrente de forma precipitada, haja vista a recentíssima publicação da MP, é coerente afirmar que esses dispositivos e a própria medida suscitarão inúmeras discussões jurídicas, seja no conteúdo formal ou material.

No momento, a única certeza que se tem é que esta foi editada em face de situação excepcional, em virtude de atualmente existir concessionária sob intervenção judicial e supostamente na eminência de ter sua falência decretada, conforme explicitado na própria Exposição de Motivos do Ministério de Minas e Energia. Certo é que não foi mero acaso a declaração pela ANEEL da intervenção de oito concessionárias de serviço público de energia elétrica, apenas um dia após a publicação da MP.

Aliás, o fato da Aneel possuir amplos poderes para declarar a intervenção, sem ao menos consultar o poder concedente, sem dúvida, é mais um ponto de extrema controvérsia desta Medida Provisória.

Gustavo De Marchi e Marvin Menezes são, respectivamente, coordenador e advogado especialista do Departamento de Direito de Energia do escritório Décio Freire e Associados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações