Título: Agenda liberal afugenta presidenciáveis
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 24/10/2006, Política, p. A8

O prestígio das idéias liberais está em baixa no Brasil. Na campanha eleitoral, nenhum candidato defende um receituário ortodoxo, baseado em medidas como a redução drástica dos gastos públicos, privatização e abertura mais ampla da economia. Geraldo Alckmin (PSDB), em tese mais próximo desse ideário, passou as últimas semanas negando que vá vender estatais ou aplicar um choque fiscal.

Na visão de economistas ortodoxos, o gosto do brasileiro por um Estado grande e gastador ajuda a explicar a impopularidade das idéias liberais no Brasil. "Há uma percepção entre as pessoas de que o Estado existe para resolver os seus problemas", diz o economista Eduardo Giannetti da Fonseca.

Apesar da abertura da economia promovida no governo Collor e das privatizações ocorridas ao longo dos anos 90, Giannetti rechaça a idéia de que o país viveu uma "overdose" de neoliberalismo nos últimos 10 a 15 anos, que poderia explicar o baixo apelo do receituário ortodoxo nestas eleições.

"Essa é uma percepção equivocada", diz, ressaltando que a carga tributária disparou desde 1994, a economia continua muito regulamentada, a legislação trabalhista é rígida e a "privatização foi tímida por padrões internacionais".

Desde o começo dos anos 90, os gastos públicos não param de crescer. As despesas não financeiras do governo federal, por exemplo, aumentaram de 13,7% do PIB em 1991 para 22,6% do PIB em 2005. Entre os economistas liberais, há consenso de que essa trajetória é insustentável, sendo o principal entrave ao crescimento do país, por impedir uma queda mais forte dos juros e exigir uma carga de impostos cada vez maior. "A prioridade de um governo liberal deveria ser a contenção das despesas públicas, ao lado da melhora do ambiente de negócios", resume Cláudio Haddad, presidente do Ibmec São Paulo. "Os políticos podem demorar a se conscientizar desse problema, mas não vejo outra solução. Hoje se assiste ao esgotamento da capacidade de investimento do setor público, com a expansão das despesas correntes".

Alckmin tem titubeado ao falar do assunto. Em geral, menciona a necessidade de um choque de gestão, sem se aprofundar no assunto, descartando uma nova reforma da Previdência. Yoshiaki Nakano, um de seus assessores econômicos, defendeu um corte mais forte de despesas, na casa de 3% do PIB, mas foi desautorizado por Alckmin, depois que os petistas passaram a dizer que reduções drásticas de gastos seriam inviáveis sem atingir programas sociais importantes.

Os ministros da Fazenda, Guido Mantega, e do Planejamento, Paulo Bernardo, insistem que um eventual segundo governo Lula adotará uma estratégia fiscal gradualista, apostando que o esperado crescimento mais forte ajudará a equilibrar as contas públicas. A receita é vista com descrença pelos analistas ortodoxos, que não acreditam em expansão mais rápida sem que se resolva o nó fiscal.

Para Giannetti, um das explicações para a falta de apelo popular da agenda liberal é que ela implica sacrifícios no presente em troca de benefícios no futuro. É o caso da reforma da Previdência, da reforma trabalhista ou da abertura da economia. Boa parte da população não aceita isso, por querer "gratificação instantânea", afirma.

Na entrevista abaixo, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga diz que muitas medidas de cunho liberal "beneficiam a maioria silenciosa", mas "prejudicam pequenos grupos organizados que gritam muito".

"Não há reformas que não provoquem perdas", concorda a economista Eliana Cardoso. Se alguém defende a privatização do Banco do Brasil (BB), os eventuais prejudicados - como os funcionários da instituição e setores da socieade que recebem empréstimos subsidiados - são mais organizados para defender seus interesses do que a população em geral que poderia eventualmente se beneficiar da medida, afirma.

Eliana esclarece que não está defendendo a venda do BB, da Caixa Econômica Federal ou da Petrobras, por não ter examinado detidamente os custos e benefícios da privatização dessas instituições. "Mas é uma idéia que deve ser discutida", afirma, incomodada com o modo como a questão de venda dessas empresas entrou nas eleições. Segundo Eliana, trazer a ameaça da privatização das três "vacas sagradas" para as eleições, do modo como fez o governo, é uma estratégia terrorista. "A tentativa de desinformar o eleitor é antiiluminista e antidemocrática. Eu considero isso muito triste", diz.

Para Haddad, privatizar a Petrobras, o BB ou a Caixa não seria a prioridade de um governo liberal. Desde que essas empresas contem com um sistema de fiscalização e um conselho de administração efetivo, ele não vê a desestatização dessas três companhias como algo prioritário.

A Petrobras já tem uma governança corporativa avançada, diz Haddad, lembrando que 60% de suas ações estão nas mãos de investidores no mercado. No caso do BB e da Caixa, no entanto, há sinais de que as instituições acabam se envolvendo em questões políticas, segundo ele. Foi o que ocorreu no caso da quebra do sigilo do caseiro Francenildo Costa, correntista da Caixa, e do envolvimento de Expedito Veloso, então diretor de risco do BB, no escândalo do dossiê.

Haddad defende a privatização de empresas do setor elétrico e dos portos, que, avalia, continuam muito ineficientes. Giannetti é um privatista mais radical, dizendo-se a favor da venda do BB, da Caixa e da Petrobras. "Por que não vender a Petrobras? Não se trata de um monopólio natural", diz, criticando a idéia de que se trata de uma empresa estratégica. "Estratégica para quê? Para ter um orçamento de cultura maior que o do Ministério da Cultura? A questão é que ela é fonte de poder político."

Para os economistas liberais, não faltam motivos para defender as privatizações feitas ao longo dos anos 90. Haddad cita o caso da venda das empresas de telecomunicações, que universalizou o acesso ao telefone, e da recuperação das empresas siderúrgicas, que estavam quebradas. O desempenho exportador da Embraer e da Vale do Rio Doce também mostraria que o processo foi bem sucedido.

A questão, para Haddad, é que mesmo quem privatizou essas estatais não o fez exatamente por convicção, mas por falta de alternativa, uma vez que estavam ou falidas ou sem capacidade de investimento. Por isso, haveria uma certa vergonha e hesitação dos políticos em defendê-las.

Eliana avalia que os ortodoxos talvez estejam pagando neste momento o preço por terem negligenciado, em alguma medida, a importância dos problemas sociais. Segundo ela, na luta contra a inflação, perdeu-se a devida ênfase dessa questão. A idéia de que o fim da inflação alta acabaria com os problemas sociais é "uma balela", afirma Eliana.

Para Giannetti, o Brasil ainda é um país em que a sociedade serve o Estado, e não contrário. Além de cortes de gastos e da privatização, ele defende a abertura maior da economia, que permita a absorção de novas tecnologias e aumente exportações e importações, e uma reforma trabalhista, que leve à diminuição da informalidade.

Mas Giannetti não é muito otimista quanto à possibilidade de implementação dessa agenda. E cita dois versos de Noel Rosa, que, para ele, dão uma boa medida da "psicologia antiliberal brasileira": "Minha terra dá banana e aipim/O meu trabalho é encontrar quem descasque por mim".