Título: Fernando Andrade foi à luta
Autor: Olmos, Marli
Fonte: Valor Econômico, 01/10/2012, Especial, p. A16

Nitidamente exausto da maratona dos últimos dias da campanha para a disputa do primeiro turno da eleição municipal, Fernando Haddad pede desculpas pelos sucessivos bocejos. Passou a noite quase sem dormir porque praticamente emendou o debate da noite anterior com mais um dia de caminhada pelos bairros. De repente ele olha para o mapa gigante da cidade de São Paulo, fixado à parede, e sonha com o impossível: "Se eu pudesse, falaria com cada um dos 8 milhões de eleitores dessa cidade".

Na conversa, o candidato do Partido dos Trabalhadores mira direto nos olhos do interlocutor. Só a aliança com Paulo Maluf foi capaz de lhe fazer desviar o olhar. Chegou a dar as costas a uma eleitora que, apesar de se declarar petista, reclamou da aliança com Paulo Maluf.

Apesar do cansaço, conta que o percurso pelas ruas o abastece com uma energia boa. "Nada substitui o contato pessoal", diz na entrevista concedida ao Valor em uma das salas do diretório municipal do PT, um prédio praticamente colado à Praça da Sé, o chamado marco zero do município cuja extensão chega a 1.530 quilômetros quadrados.

O petista que, a pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deixou o Ministério da Educação para concorrer à vaga de prefeito de São Paulo, desenvolveu sua campanha de rua apoiado nessa necessidade de falar direto com o eleitor.

O candidato que o PT escolheu foge do perfil do político convencional e na entrevista mostra-se incomodado com a ideia de falar sobre a vida particular.

Ele confirma, porém, que uma de suas maiores referências é o avô paterno, que foi um padre da igreja ortodoxa no Líbano, de onde o pai de Haddad migrou, na década de 40. Quem conta que o candidato carrega a foto do avô na carteira é a esposa, Ana Estela. Dentista, com carreira pública na área de saúde, ela é professora da USP, como o marido.

Estela explica que o avô do marido transformou-se numa referência respeitada por toda a família e a comunidade. Ele atuava como um juiz em regiões de conflitos entre católicos e muçulmanos.

Outra forte referência, que também serve de pilar de uma forte formação cristã, é a mãe, dona Norma. Kadercista, ela costumava ler o evangelho todas as noites para os três filhos. Fernando tem duas irmãs - Priscilla e Lúcia. A vida de dona Norma, segundo confirma o próprio filho, sempre foi marcada por uma intensa atividade assistencial em favelas e gerenciamento de creches.

Talvez seja, portanto, por influência da mãe que Haddad pareça não ter pressa quando abordado pela população carente, na via sacra da campanha eleitoral. Durante visita ao Jardim Pery Alto, uma das áreas de maior concentração de habitações precárias de São Paulo, um garoto de 12 anos conseguiu chegar perto do candidato e fazer seu pedido: se o petista for eleito ele quer gramado para o campinho de futebol do bairro.

Era fim de tarde e ameaçava a chover. Os organizadores alertavam para o horário para impor pressa quando o menino perguntou: "Mas o senhor não vai visitar nosso campinho?"

Antes que alguém da comitiva dissesse "não", o candidato declarou que iria, sim. A decisão custou um esforço que não estava na programação. Haddad percorreu ruelas e subiu em pilhas de cascalho para alcançar o campinho. Feliz, a garotada não parou mais de tentar se "pendurar" naquele homem e 1m83 de altura. O minucioso trabalho de corpo a corpo varou os dias. "Achei ele humilde ao entrar na loja e explicar as coisas que pretende fazer", disse Marina Aguiar , uma comerciante da Zona Leste.

O senso de justiça social que eventualmente pode pesar positivamente na conduta de Haddad é também herança do tempo que ele estreou na militância política, ao assumir o comando do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, onde formou-se bacharel em direito. Depois disso, concluiu mestrado em economia e doutorado em filosofia, também pela USP.

Segundo o jornalista Eugênio Bucci, um de seus melhores amigos, Haddad saiu-se muito bem na presidência do centro acadêmico, na década de 1980. Foi sua primeira experiência em cargo eletivo. É desse tempo a "The Pravda", nome da chapa por meio da qual os dois disputaram as eleições no Centro Acadêmico XI de Agosto. E ambos ganharam. Haddad sucedeu Bucci.

O "The Pravda", uma espécie de ironia dupla ao jornal americano "The New York Times" e ao informativo oficial da União Soviética "Pravda", desafiava a ortodoxia da esquerda. "Era um grupo divertido que buscava caminhos diferentes para fugir tanto do imperialismo como do dogmatismo da esquerda", diz Bucci.

Bucci quis também entender, à época, por que o colega da faculdade de direito, que ele considerava muito inteligente, havia optado pelo mestrado em Economia. Descobriu que a decisão se sustentava em sua própria história. O emprego na loja de tecidos que o pai instalou na Rua 25 de Março abriu o caminho de seu interesse pela área. Extremamente dedicado aos estudos, costumava carregar para a loja a imensa bibliografia exigida pelo mestrado.

Haddad confirma as origens da inclinação para a economia: "Na 25 de Março não há simples lojas de bairro; todos os ciclos econômicos afetam a região". Ele gaba-se de ter conseguido comandar, enquanto ministro da Educação, um orçamento muito maior que o da cidade de São Paulo.

A esposa do candidato pediu licença das aulas na USP para ajudar na campanha. Estela coordenou uma série de encontros com representes de diversos setores da saúde para discutir o que poderia ser mudado no programa de governo que o marido preparou para a área.

Comunicativa e tão envolvida em temas de governo quanto Haddad, Estela não se encaixa no perfil típico de primeira dama. "Acho até que esse termo deveria ser extinto", destaca o marido.

O apego à família, uma característica que os marqueteiros da campanha petista usaram e abusaram, segue a história do casal. Fernando e Estela se conheceram ainda adolescentes, no Clube Monte Líbano. Casaram-se em 1988, quando ela havia acabado de se formar em Odontologia, na USP. Um ano depois, o casal partiu para o Canadá. Ele ia para a chamada "bolsa sanduíche", que permite desenvolver pesquisa de mestrado no exterior.

Como Estela não via, no Canadá, possibilidades de ascensão na própria carreira, ambos decidiram voltar um ano depois. O mesmo aconteceu, mais tarde, quando ele foi convidado para integrar a equipe do Ministério do Desenvolvimento e, depois, assumir o Ministério da Educação. Estela e os dois filhos - Frederico, hoje com 20 anos, e Ana Carolina, com 12 - foram junto. Antes disso, Haddad foi chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Finanças, na gestão Marta Suplicy.

Estela conta que sempre percebeu que o constante envolvimento nas discussões políticas conduziriam seu marido para uma carreira na área.

Na esfera da discussão, tudo sempre fluiu bem. Mas quando a campanha efetivamente começou chamava a atenção, segundo confirmam os mais próximos, o jeitão duro do candidato, meio sem jogo de cintura, que ainda se encabulava quando tratado por "Fernando Andrade" na rua. Mas ele, foi, aos poucos, se soltando. Começou a ganhar segurança e leveza. "É preciso viver a coisa em si para entender a coreografia", diz.

"Ele é um sujeito muito aplicado", diz o coordenador da campanha de Haddad , o vereador Antonio Donato. Antes de a campanha começar para valer, o candidato dedicou um bom tempo para conhecer melhor a cidade. Segundo Donato, a equipe preparou um roteiro de imersão, por meio do qual duas vezes por semana ele percorria determinado bairro de manhã até a noite para conhecer e avaliar equipamentos públicos, como postos de saúde e escolas.

"A cidade não está bem; a cara das pessoas que encontrei é de sofrimento. O que mais chama a atenção é que enquanto a economia do país vai bem, São Paulo tem um dos piores índices de qualidade de vida do país", diz Haddad, que completará 50 anos no mesmo dia do aniversário de fundação de São Paulo, em 25 de janeiro.

Antes de a campanha começar, tudo parecia preparado para que o candidato que o Partido dos Trabalhadores escolheu conseguisse representar "o novo" para a cidade de São Paulo. Uma sucessão de fatos negativos colocou, no entanto, várias pedras ao longo dessa trilha.

A soma da influência do julgamento do mensalão com o episódio da foto de Haddad e Lula de mãos dadas com um adversário histórico, o deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), atingiu a reputação do candidato à prefeitura paulistana, avalia o cientista político Cláudio Gonçalves Couto, professor de administração pública da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. "Aí vieram duas crises, uma com Luiza Erundina e outra com Marta Suplicy", destaca Couto.

A aliança com o PP, de Maluf, rendeu para a campanha de Haddad 1 minuto e 35 segundos a mais no tempo de propaganda. Mas fez, por outro lado, com que a deputada federal Luiza Erundina (PSB) desistisse de ser vice na chapa do petista. Por fim, o lançamento da campanha não contou com a presença de Marta Suplicy. E, ao longo da campanha, a ausência de parlamentares nos eventos era patente.

Para Couto, os fatos negativos envolvendo a candidatura petista em São Paulo teriam se diluído se tivessem ocorrido de forma isolada. O cientista político também aponta para uma "produção de marketing exagerada num candidato cheio de ideias". Para ele, os debates evidenciaram que o candidato "seguiu o figurino estabelecido pelo marqueteiro além do razoável". "Haddad é o homem certo, mas na hora errada", diz.

Ao contrário da campanha da atual ministra da Cultura, Marta Suplicy, em 2008, que costumava reunir uma bancada de ministros do governo Lula na plateia dos debates de televisão, o séquito de Haddad resume-se ao coordenador de campanha, Donato, e à mulher, Ana Estela. Um deputado federal conta que a campanha do candidato não foi muito receptiva aos parlamentares petistas.

O candidato balança a cabeça quando o assunto volta para o mensalão. "Eu caminhei, em média, duas horas por dia, acompanhando o tempo todo da imprensa. E em nenhum momento foi registrado nada contra mim", diz. Sobre Lula, seu melhor cabo eleitoral, sugere que "todos deveriam agradecer por Lula existir". "É o tipo de acontecimento que só aparece uma vez por século".

Para a sessão de fotos, o candidato demonstra desânimo em princípio. A agenda está cheia e ele já está 20 minutos atrasado para o próximo compromisso. O cansaço também atrapalha. "Me sinto feio para fotografias", diz. De repente, surge Estela e muda todo o cenário. Ela ganha um abraço apertado do marido e o fotógrafo tem agora, diante de si, um candidato sorridente. O Valor publicará a partir de hoje o perfil dos três principais candidatos à Prefeitura de São Paulo