Título: 2007 será o 2º tempo do Bolsa Família
Autor: Nassif, Maria Inês
Fonte: Valor Econômico, 26/10/2006, Política, p. A12

O ditado popular "não se deve dar peixe ao pobre, mas ensiná-lo a pescar", usado em profusão nos últimos anos para questionar as políticas de transferência de renda do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, é um dilema quase superado pelos resultados do Bolsa Família. Nessas eleições, o ditado não passou de um recurso de campanha eleitoral, usado pelo candidato do PSDB, Geraldo Alckmin. Nem o seu próprio programa de governo propõe tirar o peixe da boca do pobre.

Na verdade, o grande questionamento que a equipe encarregada de elaborar o programa social de governo do candidato faz a respeito dos programas sociais do governo é sobre a paternidade deles: os tucanos reivindicam parte desse sucesso, já que entendem-no produto de um processo que vem desde os anos 90, com a implantação dos primeiros programas de renda mínima. O precursor foi o tucano José Roberto Magalhães Teixeira, na prefeitura de Campinas; seguiu-o o então governador do Distrito Federal pelo PT, Cristovam Buarque, que disputou a Presidência pelo PDT nessas eleições. No final do último governo FHC, estavam criados o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação e o Vale Gás. Datam daí as primeiras tentativas de implantação de um cadastro único de beneficiários e de integração dos programas existentes.

Curiosamente, os responsáveis pelo programa, hoje reunidos no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a maioria deles militantes da área social de longa data, se deslocam ainda mais no tempo para situar o programa social que andou com as próprias pernas no governo Lula como uma conquista social. "Nós consideramos importantes os avanços anteriores", afirma o ministro Patrus Ananias. O primeiro deles foi a Constituição de 1988, quando a assistência social foi incluída no texto constitucional como política pública. Foi o início de uma mudança de cultura, segundo a secretária-executiva do MDS, Márcia Helena Carvalho Lopes. "O país sempre conviveu com baixos índices de investimento social e com uma concepção conservadora da sociedade, uma confusão conceitual de política social com assistencialismo e benemerência", afirma Márcia. Embora a cultura ainda exista, desde a Constituinte uma série de direitos sociais foram consolidados em lei: a partir dos anos 90, foram aprovados o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a Lei Orgânica de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde. Este ano, por fim, foi aprovada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar (Losan), que consolida como política pública o Bolsa Família e ações correlatas.

Para os militantes sociais, hoje autoridades envolvidas na execução de uma política pública de complementação de renda, esse é o momento em que o que era "esmola", o "peixe dado" via políticas de transferência de renda, torna-se política pública, e, portanto consolida-se como direito. O mérito do governo Lula teria sido de incluir, definitivamente, na agenda do país, a política social; e de ter dado uma extensão e capilaridade ao programa que não foi conseguido no governo anterior.

O Bolsa Família, carro-chefe da política social do governo Lula, atingiu este ano um número superior a 11 milhões de famílias - considerando um tamanho médio de quatro pessoas por família, teria chegado ao prato de pelo menos 44 milhões de pessoas em situação de miséria, que seria o número estimado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2004 de pessoas nessas condições. O ministério admite não ter chegado a famílias em lugares de "difícil acesso".

A eficiência do programa já apareceu nas estatísticas. Segundo pesquisas do Centro de Políticas Sociais (CPS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), coordenadas por Marcelo Neri, a proporção de pessoas abaixo da linha da miséria (segundo critério da Organização Mundial da Saúde, aquelas que consomem um número de calorias que seriam adquiridas com R$ 115 mensais) era de 35,87% em 1992, baixou para R$ 27,26% em 2003 e atingiu o nível mais baixo desde 1992, quando foi lançada a nova PNAD, em 2004, chegando a 25,08%. Segundo o critério assumido pelo governo, estão abaixo da linha da pobreza aqueles que vivem com menos de um dólar por dia. Neste caso, de 35% de pessoas que existiam nesta situação em 1992, hoje restam 5,3%. Em 2004, a pobreza, medida pelo índice Gini, caiu 8% em relação a 2002.

O sucesso do Bolsa Família é atribuído por Neri à "focalização", antes do programa considerada uma "idéia maldita". O fato, no entanto, é que o foco nos "pobres dos pobres" e, entre eles, nas crianças, deu efetividade ao programa e rapidez nos resultados. O programa mira as famílias abaixo da linha de pobreza (que vivem com menos até R$ 60 per capita mensais). Elas recebem R$ 50, independente das condicionalidades; e podem agregar R$ 15 por cada filho, até três filhos, com condicionalidades: até seis anos, manter a vacinação em dia; depois dos seis até os 13 anos, mantê-los na escola. Os critérios de acesso são públicos, o cadastramento é feito pelas prefeituras e a fiscalização, pelos Ministérios Públicos Estaduais.

Diante dos números, não existem mais grandes discussões sobre a efetividade de políticas de distribuição de renda. Embora alguns economistas tenham levantado objeções fiscais ao programa, argumentando que a população pobre seria mais beneficiada se esse dinheiro fosse convertido em investimentos, hoje eles são minoria. Para Marcelo Neri, os programas de transferência são efetivos inclusive em termos fiscais, porque são baratos e provocam efeitos imediatos sobre a miséria e a distribuição de renda. Segundo Neri, se o governo tivesse deslocado a despesa adicional que teve com reajustes relativamente altos do salário mínimo nos últimos dois anos, entre 23% e 24% reais, para o Bolsa Família, aumentando o valor do benefício, a redução da pobreza teria sido maior. "Nossos estudos mostram que cada real gasto em transferência de renda reduz a pobreza duas vezes mais do que cada real gasto no salário mínimo", afirma. Como o salário mínimo foi reajustado muito nos últimos dez anos, segundo o pesquisador, ele já provoca efeitos adversos no próprio mercado de trabalho. "Talvez o salário mínimo tenha perdido a qualidade de melhorar o mercado de trabalho".

A quase universalização da política de transferência de renda foi o grande mérito do governo Lula. Para chegar a isso, o governo teve que comprar uma briga com o que o ministro Patrus Ananias chama de "falso dualismo" estabelecido entre as políticas emergenciais e as estruturantes, ou emancipatórias, dirigidas à população pobre. As primeiras, segundo o ministro, criariam condições aos beneficiados de assumirem plena consciência de cidadania. "A fome mata, não espera, e de barriga vazia ninguém pensa", afirma Patrus. O outro argumento contrário ao programa, de que uma renda do Estado geraria o conformismo com a pobreza, é desmentida por pesquisas qualitativas do ministério. Segundo o secretário de Avaliação e Gestão da Informação do MDS, Rômulo Paes de Souza, elas mostram que a renda mínima melhora a auto-estima dos beneficiados e ampliam a expectativa em relação às suas próprias vidas - expectativas que ultrapassariam os limites de uma compensação de renda que varia de R$ 18 a R$ 114 por mês oferecida pelo Bolsa Família.

No momento em que a política de transferência de renda está praticamente universalizada, dois problemas se colocam: o primeiro, manter a população que saiu da linha da pobreza abaixo dela. Na ótica da política emergencial, é preciso manter o poder de compra dessas transferências. O PT admite o reajuste dos benefícios; o programa do PSDB não fala disso. O segundo momento é o de redução desse contingente de beneficiados via portas de saída, ou políticas emancipatórias que permitam ao muito pobre abrir mão do benefício em favor de uma renda própria, melhor do que a que recebe do governo.

O desenho do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome contempla um perfil de política estruturante. Na verdade, o ministério é mais um órgão articulador de políticas públicas do que propriamente executor. Ele coordena 22 programas, espalhados por 13 ministérios. No caso do Bolsa Família, a articulação também é feita com Estados e municípios. São considerados programas complementares aos de transferência de renda os de alfabetização e educação de jovens, a cargo do Ministério da Educação; o Programa Nacional de Agricultura Familiar, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Luz para Todos, do Ministério das Minas e Energia. Ao Bolsa Família foi incorporado também o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), do MDS.

Hoje, 600 mil famílias beneficiárias do Bolsa Família são atendidas pelo Pronaf B e 61 mil famílias do Nordeste atendidas pelo Crediamigo, do Banco Nacional do Nordeste (BNB). O Luz para Todos prioriza as famílias atendidas pelo Bolsa Família - a base de dados das famílias beneficiárias com dificuldades de acesso à luz são encaminhadas pelo MDS ao Ministério das Minas e Energia.

O emaranhado de articulações embute o conceito de que retirar uma população da linha de miséria não se restringe a dar a ela acesso a alimentos, mas inseri-la e torná-la beneficiária também de uma rede de serviços públicos. Para isso é fundamental a informação. "Existe ainda pouca transparência na informação do programa", afirma Neri.

O grande salto da qualidade de informação foi a estruturação de um cadastro único de beneficiários, que permitiu excluir 900 mil benefícios em duplicidade neste ano, segundo a secretária-geral do MDS. Mas isso ainda não é suficiente como base para a formulação de políticas integradas. Segundo Neri, o México, onde tem um programa semelhante, montou um banco de dados sobre pesquisas de campo que permite avaliação de impacto quase instantânea, e sobre a qual se debruça toda a comunidade acadêmica internacional. O MDS hoje tem, ou prontas, ou em andamento, 72 pesquisas de impacto, mas encomendadas setorialmente. O dado universal disponível atualmente é o número de benefícios e o nome dos beneficiados. Mas, no próximo mês, o ministério deve ter em mãos um levantamento encomendado ao IBGE de todos os equipamentos sociais existentes em cada cidade, públicos e não-públicos (organizações não-governamentais e entidades assistenciais), para poder direcionar ações contra a exclusão social. "A partir desse levantamento será possível desenvolver ações como documentação, alfabetização, água, inclusão produtiva e ações partilhadas com o Ministério do Trabalho, como qualificação profissional", afirma Márcia.

A incorporação do Peti ao Bolsa Família também poderá ser um passo para gerar informações e ações sobre um problema persistente: embora muita gente tenha saído da linha de pobreza, mais crianças estão trabalhando. "O trabalho infantil aumentou e isso talvez seja um efeito colateral do próprio boom trabalhista", afirma Neri. De qualquer forma, acredita o especialista, o programa poderia preparar melhor as famílias para "defenderem" suas crianças numa situação favorável de mercado de trabalho.

O programa de governo tucano prevê a manutenção do Bolsa Família; aprova a articulação do programa de transferência com o Pronaf; e se envereda também por propostas do que poderiam ser "portas de saída" da pobreza. Além das ações articuladas com outras políticas públicas, o programa do PSDB propõe outras, com foco principalmente nos adolescentes e jovens que hoje estão fora dos benefícios do Bolsa Família mas engrossam as estatísticas de evasão escolar. Um é o "Poupança Família", que seria um depósito anual feito por um período máximo de dez anos, que poderia ser sacado em 70% quando o filho concluir o ensino fundamental, e outros 70% quando ingressar no ensino médio ou técnico. O "Ação Jovem" seria destinado àqueles que já cursam o ensino médio, que teriam direito a uma poupança anual por um período máximo de até três anos, que poderia ser retirada integralmente na conclusão do curso. O "Crédito Social" seria voltado para jovens empreendedores; o "Com Licença Eu Vou à Luta", direcionado para a inserção de mulheres chefes de família no mercado de trabalho. Além disso, o programa do PSDB prevê uma premiação, com um benefício adicional, aos alunos beneficiários do Bolsa Família que estiverem entre os 10% melhores alunos das salas de aulas. Mesmo com esse detalhamento de novos programas sociais, o programa tucano, no entanto, prioriza o crescimento econômico como maior política de renda e emprego. "Pelo exemplo de outros países, sabemos que um crescimento de 5% a 6% tem um impacto importante sobre a pobreza", afirma um dos integrantes da equipe de programa de governo. A equipe envolvida na elaboração do programa social foi coordenado por Ana Lobato.

É o segundo momento, portanto, que está em questão nos projetos dos dois candidatos a presidente da República. O pesquisador Marcelo Neri não apenas considera isso fundamental, como acha que devem ser impostas algumas condicionalidades que representem maior desafio para os beneficiários dos programas de transferência de renda - o que chama de "desafios transformadores". Condicionar, hoje, o benefício à vacinação das crianças de até seis anos, ou à matrícula escolar, no momento em que ambos estão praticamente universalizados, é "chover no molhado". "É possível incentivar a demanda por escolas via Bolsa Família", afirma Neri. Com o Fundeb, por exemplo, torna mais fácil controlar a freqüência escolar. Resolvido o problema da escola primária, dá para induzir as famílias, via Bolsa Família, a demandar pré-escolas. "Agora temos que discutir o up grade do Bolsa Família, o Bolsa Família 2.0", diz o pesquisador da FGV.