Título: Afrouxamento quantitativo tupiniquim?
Autor: Garcia, Márcio
Fonte: Valor Econômico, 19/10/2012, Opinião, p. A15

Em resposta, quem sabe, às sucessivas reclamações de nossas autoridades quanto aos efeitos colaterais do afrouxamento quantitativo da política monetária nos países avançados, o blog "Beyondbrics", do "Financial Times", acusou o Brasil de praticar política semelhante. Segundo o blog, as maciças intervenções cambiais esterilizadas que o BC fez no passado, elevando as reservas cambiais a níveis acima de US$ 380 bilhões, seriam também uma forma de afrouxamento monetário quantitativo (quantitative easing, QE).

QE é uma ferramenta de política monetária para ser usada em casos extremos de fraqueza da economia. Os bancos centrais recorrem ao QE somente quando a política monetária convencional já perdeu seu poder de estimular a economia, por estar a taxa nominal de juros perto de zero. Ainda que o PIB brasileiro esteja crescendo pouco e a taxa Selic tenha atingido seu nadir de 7,25%, nada indica que QE seja política adequada no Brasil. Na verdade, as intervenções esterilizadas foram muito fortes em 2010, justamente quando o PIB cresceu muito (7,5%) e a taxa Selic terminou o ano em dois dígitos. Já nos últimos meses, como os fluxos de capitais diminuíram e nossas exportações caíram, na esteira da queda do preço das commodities, o BC não tem intervindo no mercado de câmbio à vista.

Apesar disso, há, de fato, similaridades entre QE e as maciças intervenções cambiais esterilizadas que o BC conduziu até recentemente e pode voltar a fazer no futuro. Frequentemente, o BC tem se manifestado, via documentos ou declarações de seus diretores e presidente, que, quando excessivos, fluxos de capital tenderiam a criar bolhas de crédito, mesmo quando o BC compra os dólares via intervenções esterilizadas. Outros bancos centrais de países emergentes compartilham tal opinião.

Em artigo acadêmico, mostro que, de fato, intervenções cambiais esterilizadas acabam levando ao crescimento do crédito, o que aumenta a demanda agregada e pressiona a inflação. Esse efeito ocorre independentemente do impacto que as intervenções esterilizadas possam vir a ter sobre a taxa de câmbio. Naturalmente, se as intervenções esterilizadas ajudarem a depreciar o real, serão dois os efeitos expansionistas sobre a demanda agregada.

O canal de transmissão das intervenções esterilizadas ao crédito e à demanda agregada opera da seguinte forma. Suponha, para facilitar, que os fluxos de capitais tomem a forma de empréstimo externo a um banco brasileiro, que representaria todo o setor bancário. Quando o banco brasileiro recebe os recursos externos, seu passivo (e ativo) aumenta no equivalente em reais do empréstimo externo. A intervenção esterilizada do BC visa garantir que o banco vá aplicar tais recursos integralmente em títulos públicos (operações compromissadas, reverse repos) que rendem a taxa Selic. Assim, quando o BC finaliza a intervenção esterilizada, o banco se vê com um ativo maior (devido ao empréstimo externo) alocado proporcionalmente mais em títulos públicos.

Como a taxa Selic não mudou, o banco quererá redirecionar parte do ativo alocado em títulos públicos para empréstimos. Esse movimento de realocação de portfólio aumenta a oferta de empréstimos e reduz a taxa de juros dos empréstimos, expandindo assim a demanda agregada. Ao mesmo tempo, quando o banco vende os títulos públicos para poder aumentar os empréstimos, a taxa Selic é pressionada para cima. Para manter a taxa Selic na meta fixada pelo Copom, o BC recompra as operações compromissadas e emite moeda. Ao final da realocação de portfólio do banco, a mesma taxa Selic, combinada com maior demanda agregada, gera também maior demanda por moeda, que é sancionada pela emissão monetária do BC, a fim de manter a taxa Selic na meta.

Em 2010, por exemplo, apesar do aumento da Selic de 8,75% para 10,75%, a base monetária expandiu-se em 25%. O crédito expandiu-se a taxas similares, e a inflação elevou-se a 6%, levando à adoção das medidas macroprudenciais para esfriar a economia. Esses movimentos são compatíveis com o modelo descrito. Em outras palavras, quando um banco central segue uma regra para a taxa de juros, como ocorre no regime de meta para a inflação, e conduz maciças intervenções esterilizadas, ele não esteriliza toda a liquidez criada. Para manter inalterada a base monetária, o BC teria que elevar a taxa de juros acima daquela que prevalecia quando começaram a ocorrer os fluxos de capitais.

Outra analogia com QE é notar que o BC conduz intervenções esterilizadas em apenas um tipo de ativo financeiro: títulos públicos (operações compromissadas). Para manter todos os rendimentos constantes - tanto a taxa Selic como as taxas dos empréstimos - o BC deveria intervir também via empréstimos, ou seja, o BC deveria comprar e vender empréstimos, tal como faz com títulos públicos. Se assim o fizesse, o BC conseguiria restaurar a mesma alocação de portfólio que o banco tinha antes de o passivo (e, consequentemente, o ativo) aumentar. A maioria dos bancos centrais não age dessa maneira, estando mesmo impedidos legalmente de fazê-lo, como é o caso do BC. No entanto, QE tem adotado esse formato. Ao anunciar recentemente a terceira onda de afrouxamento quantitativo (QE3), o Fed anunciou que iria comprar mensalmente US$ 40 bilhões de empréstimos hipotecários, com o objetivo de reduzir o custo das hipotecas, assim estimulando o investimento residencial e reduzindo o desemprego.

Portanto, se e quando a economia mundial se recuperar (como todos desejamos!), e os fluxos de capitais retornarem aos mercados emergentes, os bancos centrais não devem contar tanto com intervenções esterilizadas. Isto é especialmente verdadeiro no caso do Brasil, no qual a acumulação de reservas ainda é extremamente onerosa, gerando pesada conta de juros. Por qualquer ângulo que se olhe, um verdadeiro ajuste fiscal continua a ser a melhor solução.

(1) Quantitative easing, Brazilian style", disponível em blogs.ft.com/beyond-brics/2012/09/10/quantitative-easing-brazilian-style/#axzz29 YwZcV25.

(2) "Can sterilized FX purchases under inflation targeting be expansionary?, disponível em www.econ.puc-rio.br/mgarcia.