Título: Assassinos distraídos
Autor: Sachs, Jeffrey D.
Fonte: Valor Econômico, 22/03/2007, Opinião, p. A19

Como espécie, os seres humanos têm um grave problema de autocontrole. Nós, humanos, pescamos, caçamos, serramos troncos e plantamos tão agressivamente atualmente em todas as partes do globo que estamos literalmente eliminando as demais espécies do planeta. Nosso desejo intenso de retirar tudo o que podemos da natureza deixa muito pouco para outras formas de vida.

Em 1992, quando os governos do mundo prometeram pela primeira vez abordar o aquecimento global produzido pelo homem, também prometeram solenemente deter a extinção de outras espécies, induzida pelos seres humanos. A Convenção sobre Diversidade Biológica, acordada na Cúpula da Terra no Rio, estabeleceu que "a diversidade biológica é uma preocupação comum da humanidade". Os signatários concordaram em conservar a diversidade biológica, salvando espécies em seus "habitats", e a utilizar recursos biológicos (por exemplo, florestas) de forma sustentável. Em 2002, os signatários foram além, comprometendo-se com "uma redução significativa na taxa atual de perda de biodiversidade" até 2010.

Lamentavelmente, a exemplo de tantos outros acordos internacionais, a Convenção sobre Diversidade Biológica permanece basicamente desconhecida, sem patrocínio e descumprida. Esse desleixo representa uma tragédia humana. Em troca de um desembolso ínfimo - e, possivelmente, absolutamente nenhum, no fim das contas - poderíamos conservar a natureza e, assim, poderíamos proteger a base das nossas próprias vidas e dos nossos meios de subsistência. Matamos outras espécies não porque precisamos, mas por que somos negligentes demais para proceder de outra forma.

Consideremos dois exemplos notórios. Alguns países ricos, como Espanha, Portugal, Austrália e Nova Zelândia, possuem frotas pesqueiras que adotam a chamada "pesca de arrastão". Os pescadores de arrasto profundo arrastam redes pesadas no leito do oceano, destruindo, neste processo, magníficas e inexploradas espécies marinhas ameaçadas. Sistemas ecológicos únicos e complexos, mais notadamente vulcões submarinos conhecidos como montes submarinos, são reduzidos a pedaços, pois a pesca de arrastão é a forma de "baixo custo" utilizada para pegar algumas poucas espécies de pescado no mar profundo. Uma destas espécies, o olho-de-vidro, tem sido capturada comercialmente por apenas cerca de 25 anos, mas já está sendo pescada à beira do colapso.

Da mesma maneira, em muitas partes do mundo a floresta tropical está sendo removida para dar lugar a pastagens e lavouras de alimentos. O resultado é uma maciça perda de habitat e destruição de espécies, produzindo um minúsculo benefício econômico a um enorme custo social. Depois de ceifar uma faixa de floresta tropical, freqüentemente os solos são rapidamente despojados dos seus nutrientes, de forma que não conseguem suportar lavouras ou pastos nutritivos para gado. Consequentemente, as novas terras de pastagem ou terras agrícolas são rapidamente abandonadas, sem qualquer perspectiva de regeneração da floresta original e dos seus ecossistemas únicos.

Considerando que os custos dessas atividades são tão elevados e seus benefícios tão reduzidos, impedi-las seria fácil. A pesca de arrastão deveria simplesmente ser banida; seria simples e barato compensar a indústria da pesca durante uma transição para outras atividades. A eliminação de florestas, por outro lado, provavelmente será melhor impedida por meio de incentivos econômicos, possivelmente combinados com limites regulatórios. Simplesmente restringir a prática da eliminação de florestas provavelmente não funcionará, uma vez que as famílias de agricultores e as comunidades enfrentariam uma forte tentação para ultrapassar limites legais. Por outro lado, os incentivos financeiros provavelmente teriam êxito, pois derrubar florestas para criar pastagens não é uma atividade suficientemente lucrativa para induzir agricultores a renunciarem a pagamentos para proteger a terra.

-------------------------------------------------------------------------------- A exemplo de outros acordos internacionais, a Convenção sobre Diversidade Biológica permanece desconhecida, sem patrocínio e descumprida --------------------------------------------------------------------------------

Muitos países com florestas tropicais se uniram nos últimos anos para sugerir a criação de um fundo de conservação de florestas tropicais pelos países ricos, que daria aos pequenos agricultores empobrecidos uma pequena quantia de dinheiro para preservar a floresta. Um fundo bem planejado reduziria ou deteria o desflorestamento, preservaria a biodiversidade e diminuiria as emissões de dióxido de carbono causadas pela queima das florestas eliminadas. Ao mesmo tempo, os pequenos agricultores receberiam um fluxo regular de renda, que poderiam usar para fazer microinvestimentos com o propósito de melhorar o patrimônio, a educação e a saúde das suas famílias.

Além de proibir a pesca de arrastão e de estabelecer um fundo global para o desflorestamento evitado, precisamos designar uma rede global de regiões marinhas protegidas, nas quais pesca, esportes de vela, ações poluentes, dragagem, perfuração e outras atividades danosas seriam proibidas. Essas regiões não só permitiriam a regeneração das espécies, como também ofereceriam benefícios ecológicos que se disseminariam para regiões vizinhas não protegidas.

Também precisamos ter um processo científico regular que permita apresentar ao mundo evidências sobre abundância e extinção de espécies, exatamente como o processo de que dispomos atualmente para a mudança climática. Os políticos não atentam muito bem para cientistas isolados, mas são obrigados a escutar quando centenas de cientistas falam com uma única voz.

Finalmente, o mundo deve negociar uma nova estrutura antes de 2010 para reduzir a mudança climática induzida pelo Homem. Não pode haver nenhuma dúvida de que a mudança climática representa um dos riscos mais graves à viabilidade das espécies. À medida que o planeta se aquece, e à medida que os padrões de chuvas e de tempestades mudarem dramaticamente, muitas espécies estarão em zonas climáticas que já não sustentarão a sua sobrevivência. Algumas poderão migrar, porém outras (como os ursos polares) provavelmente serão levadas à extinção, a menos que tomemos iniciativas decisivas para deter a mudança climática.

Essas medidas são realizáveis até 2010. Elas são custeáveis, e em cada caso poderão gerar enormes benefícios líquidos. E o que é mais importante, elas nos permitirão dar seqüência a uma promessa global. É penoso demais acreditar que a humanidade poderia destruir milhões de outras espécies - e colocaria em risco o nosso próprio futuro - num arroubo de distração.

Jeffrey D. Sachs é livre-docente de Economia e diretor do Instituto Terra na Universidade Columbia. É também consultor especial para as Nações Unidas na questão das Metas de Desenvolvimento do Milênio.© Project Syndicate/Europe´s World, 2007. www.project-syndicate.org