Título: Gol compra Varig com ações e dinheiro
Autor: Adachi, Vanessa e Campassi, Roberta
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2007, Especial, p. A24

Dia 25 de julho de 2005. Era uma manhã ensolarada na habitualmente cinzenta Seattle (EUA) e Constantino Oliveira, o "seu Nenê", controlador da Gol, estava prestes a assinar um contrato bilionário de compra de aviões da Boeing, o maior já fechado por uma empresa da América Latina. Para espanto dos presentes, sacou do bolso do paletó uma caneta com o logotipo da Varig, que, então, ainda era uma única empresa, afundada em dívidas bilionárias, de destino incerto e sua concorrente. Questionado sobre o seu ato, teceu muitos elogios à companhia do logo azul. Visto pelo retrovisor, o episódio ganha ares premonitórios.

Ontem, a Gol anunciou que está comprando das mãos do fundo americano Matlin Patterson a VRG, a chamada "nova" Varig, por US$ 320 milhões.

Para espanto de analistas, que esperavam uma estrutura societária que oferecesse maior blindagem contra um eventual risco de sucessão, a família Constantino optou por fazer a aquisição por meio da Gol Linhas Aéreas Inteligentes, a empresa de capital aberto. É essa empresa que controla a Gol operacional. E será ela também que controlará a subsidiária GTI, que está comprando a Varig.

Como pagamento, serão dadas ações da Gol no valor aproximado de R$ 340 milhões, representativas de cerca de 3% do seu capital. Outros US$ 98 milhões serão pagos em dinheiro, com recursos do caixa da aérea. Por fim, a Gol assumirá a obrigação de honrar R$ 100 milhões em debêntures da nova Varig, emitidas dentro do plano de recuperação judicial para pagamento de credores.

Com a aquisição, a Gol pretende ultrapassar a TAM e assumir a liderança entre as companhias aéreas brasileiras dentro de apenas dois meses. Essa é a expectativa dentro da empresa, embora o comunicado oficial emitido ontem seja mais conservador e fale num prazo até o fim do ano.

A ousadia da Gol, em comprar uma companhia que é tida como um poço de potenciais contingências ainda não totalmente mapeáveis, encontra duas explicações estratégicas. A primeira é assumir todos os horários de pouso e decolagem ("slots") que a Varig tem em Congonhas, o principal aeroporto do país, que está no limite de sua capacidade. No ano passado, a TAM registrou 3,012 milhões de embarques em Congonhas, 48% do total. Somando a posição da Varig e da Gol em 2006, chega-se a 2,93 milhões de embarques - 2,16 milhões da Gol e 763 mil da Varig.

A segunda explicação é que a Gol vai usar a estrutura da Varig para lançar uma companhia aérea de baixo custo especializada em vôos internacionais de longo curso, notadamente para Europa e América do Norte. Com isso, segue a tendência de outras "low cost", como a Ryanair e a Virgin Blue. Depois de abocanhar o mercado de vôos domésticos ou continentais, as aéreas de baixo custo começaram a perceber que, agora que adquiriram histórico de gestão e colocaram dinheiro em caixa, podem aplicar seu modelo para conquistar também o mercado internacional. Mas, isso tudo, por meio de uma subsidiária específica que reduza o risco de contaminação do modelo de negócios da empresa-mãe.

E por que a Gol precisava da Varig para fazer isso? Porque, embora mantenha vôos apenas para Frankfurt, a nova Varig ainda tem autorizações válidas para aterrissar em Paris, Londres, Madri, Milão, Nova York e Miami. Essas autorizações são difíceis de se obter e não se transmitem de uma empresa para outra. Quando uma companhia perde o direito de usar determinado horário de pouso e decolagem num aeroporto internacional, esse direito migra para a primeira empresa que esteja na fila à espera, independentemente do país de origem.

A nova Varig opera atualmente 17 aeronaves. A Gol já anunciou que elevará quase que imediatamente sua frota para 34 jatos, sendo 20 Boeing 737 e 14 Boeing 767. Os contratos, que envolvem aviões de segunda mão, já estão em negociação com a fabricante americana de aviões. Talvez a Gol venha a substituir todos os aviões em uso pela Varig atualmente, mediante avaliação que começará a fazer a partir do momento em que assumir a empresa. A junção das duas aéreas é uma boa notícia para a Boeing. Embora as duas já sejam suas clientes, havia o risco de a Varig ir parar nas mãos de outra companhia que operasse com frota da rival Airbus.

O serviço internacional da Varig manterá apenas as classes econômica e executiva, eliminando a primeira. O programa Smiles será mantido e reforçado.

Hoje, ao fazer a teleconferência com analistas do mercado de ações, a Gol terá pela frente a dura missão de convencê-los de que a sua estratégia faz sentido e que o risco assumido está devidamente controlado. Analistas ouvidos ontem pelo Valor logo após o anúncio da operação demonstraram boa dose de ceticismo e contrariedade.

"Muito surpreendente", disse o analista Dan McGoey, do Deutsche Bank, em Nova York. "Conversamos com TAM e Gol por um ano sobre a possibilidade de elas comprarem a Varig, mas elas sempre demonstraram receio de herdarem os passivos da empresa. A questão é: por que a Gol mudou sua opinião jurídica?"

Segundo o analista, uma das possibilidades é que a Gol tenha contado com a morosidade da Justiça brasileira. Analistas também consideram que a intenção de barrar a entrada da chilena LAN no país funcionou como forte incentivo para a Gol. Para Daniel McGoey, do Deutsche Bank, a TAM tem nas rotas internacionais uma proteção (hedge) contra as variações de humor do mercado doméstico. "A Gol também quer tirar vantagem disso."

Dois analistas que preferiram não se identificar enquanto não obtêm mais informações sobre a operação, disseram considerar a operação arriscada. "Rotas de longa distância e a adoção de um segundo modelo de negócios vai na direção contrária de tudo o que a Gol sempre falou", disse um deles. "Historicamente, as melhores low cost são aquelas que focam exclusivamente nesse modelo", concorda McGoey. Ele citou o caso da Delta e da United Airlines, que têm subsidiárias de baixo custo (TED e Song) não bem sucedidas. Outro exemplo usado foi o da JetBlue, que deixou de operar aviões de frota única para comprar jatos da brasileira Embraer e tem sofrido com isso.

Os analistas também consideraram contraditório, à primeira vista, que a Gol tenha anunciado que manterá as duas companhias totalmente independentes ao mesmo tempo que fala em sinergias geradas.

Por conta das notícias que vinham sendo publicadas afirmando que a aquisição iria ocorrer, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) enviou dois ofícios só esta semana para a Gol. O primeiro ocorreu na manhã de segunda-feira e foi respondido ontem pela empresa, que não confirmava nem desmentia a aquisição da Varig. O segundo ofício foi enviado ontem mesmo e a resposta acabou sendo já o fato relevante anunciando a operação.

"Não há problemas em ter uma negociação sigilosa, desde que essa informação não saia do controle", explica a superintendente de relações com empresas (SEP) da CVM, Elizabeth Machado. "No momento em que começam a sair notícias, é porque há sinais de vazamento, de que essa informação saiu do controle, nesse caso, é preciso que todo o mercado seja comunicado, para que não ocorra assimetria de informação", completou. Segundo Elizabeth, a CVM vai analisar agora a conduta da área de relações com investidores da empresa para ver se esta foi em conformidade com as regras da Instrução 358, que trata da política de divulgação de informações.

Elizabeth estranhou ainda que, além das ações da Gol, que tiveram alta ontem, as da Varig também subiram. "A Varig que está sendo adquirida é a nova e a que é listada, é a velha. Por aí, já notamos que a informação pode não estar clara para o investidor, que os dados podem estar confusos para ele. A divulgação clara e ampla é muito importante", conclui a superintendente. (Colaborou Catherine Vieira, do Rio)