Título: O legado de Yeltsin
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2007, Opinião, p. A22

"Morreu um homem graças ao qual teve início uma era inteiramente nova. Nasceu uma Rússia nova e democrática: um país livre, aberto ao mundo, no qual o poder efetivamente pertence ao povo". Assim Vladimir Putin louvou Boris Yeltsin, o homem que o escolheu para a Presidência de seu país. Putin está certo e errado. Yeltsin foi o líder mais democrático que a Rússia jamais teve. Mas o que está surgindo sob seu sucessor não é a democracia vibrante que muitos esperavam. O legado de Yeltsin é tão contraditório quanto foi seu caráter turbulento.

Yeltsin foi um dos poucos líderes que transformaram o mundo. Seu nome ficará sempre ligado ao de Mikhail Gorbachev, o último secretário geral do Partido Comunista da União Soviética (URSS), uma organização que desempenhou um papel tão catastrófico na história do Século XX. A coragem e o carisma de Yeltsin puseram fim tanto ao Partido como à própria URSS.

Seus inimigos nunca o perdoarão por seu papel na extinção do Partido, do Estado e do império russo em 1991. Mas aqueles que viveram a maior parte de suas vidas na sombra da Guerra Fria sempre lhe serão gratos. A imagem de Yeltsin opondo-se heroicamente à tentativa do golpe de Estado em agosto de 1991 é inesquecível. Foi o fim de uma era terrível na história da humanidade, durante a qual o despotismo foi quase além dos limites da imaginação.

A coragem de Yeltsin nasceu, em parte, de cálculo. Ele era, afinal de contas, um "apparatchik", versado nas tortuosas políticas do sistema soviético. Já tinha apostado sua posição como porta-voz de uma reforma radical no Politburo, e depois como primeiro presidente eleito democraticamente na Rússia. Em 1991, tinha de se opor ao golpe. Mas essas eram também as escolhas corretas: estava do lado certo da história. Ele reconheceu que a URSS tinha se transformado numa concha vazia e teve a ousadia de promover sua ruptura.

Inevitavelmente, Yeltsin não soube o que fazer com o poder que conseguiu. Isso não é de surpreender. Estava despreparado para dar conta dos problemas políticos, sociais, econômicos e psicológicos que confrontou. Ninguém estaria preparado. Inevitavelmente, a reforma da Rússia, cujo povo sentiu ter sofrido uma derrota, revelou-se mais difícil do que a reforma do antigo império, onde a maioria dos povos estava desfrutando a libertação.

Além disso, se Yeltsin não fosse o epítome do russo turbulento (leia-se, bêbado) que foi, não teria tido a coragem de enfrentar o sistema e vencê-lo. Ele nunca compreendeu plenamente o que é democracia ou economia de mercado. E como poderia? Mas, para seu eterno crédito, tolerou a liberdade de expressão, permitiu que as ex-repúblicas da URSS seguissem seu próprio caminho, deu apoio esporádico aos reformadores, foi em frente com a eleição presidencial em 1996 e, não menos importante, deixou o cargo pacificamente. Além disso, apesar de todos os erros que cometeu, Yeltsin deu efetivamente início ao avanço rumo ao mercado. Não era um intelectual civilizado nem um estadista sofisticado, mas, em comparação com os abomináveis padrões russos, foi quase um milagre.

A história, creio, julgará ter ele cometido três enormes erros: a guerra na Tchetchênia, que levou os serviços de segurança ao coração do governo; o programa "empréstimos em troca de participações acionárias" em 1995, que transferiu uma gigantesca parcela da riqueza natural da Rússia para um minúsculo número de mãos privadas; e a escolha de Putin para o suceder. Esses três, reunidos, resultaram numa reversão do impulso rumo a uma Rússia mais democrática, liberal e aberta. Mas esses erros são pelo menos compreensíveis: o primeiro porque os russos temiam a dissolução de seu país; o segundo, porque a volta dos comunistas ao poder parecia risco real; e o terceiro, porque Putin parecia confiável e impoluto.

-------------------------------------------------------------------------------- A reforma da Rússia, cujo povo sentiu ter sofrido uma derrota, foi mais difícil do que a reforma do antigo império, onde os povos desfrutaram de uma libertação --------------------------------------------------------------------------------

Esses erros não foram apenas de Yeltsin. O Ocidente também cometeu grandes erros. Deu pouca ajuda no início, quando poderia ter feito diferença, e ajuda demasiada depois, quando protelou a crise financeira de 1998, pela qual Yeltsin e o Ocidente foram devidamente culpados.

Por trás dos erros de Yeltsin havia um problema ainda maior: seu frouxo controle sobre o próprio governo. Sob seu comando, o governo foi corrupto, incompetente e débil. Uma reação contrária era inevitável. Ela assumiu características tradicionalmente russas: o renascimento de um Estado arbitrário e forte, não moderado por freios parlamentares ou legais, presidindo uma sociedade amedrontada.

A notável história de Yeltsin pode, portanto, ser vista, na melhor das perspectivas, como um êxito parcial, e, na pior, como um grave fracasso. Eu tenderia mais para a primeira avaliação. A Rússia de hoje não é a que um liberal europeu esperaria. Mas é certamente muito melhor do que a Rússia de três décadas atrás. Por esse fato, Yeltsin merece grande crédito.

A história dos altos e baixos da reforma russa ao longo das últimas duas décadas não tem a ver apenas com liderança e idéias políticas, por mais importantes que tenham sido. Foi resultado também do impacto do preço mundial da energia numa economia que o socialismo stalinista tinha feito desesperadamente ineficiente.

A reforma econômica teve início com Gorbachev, na velha URSS, logo depois do colapso no preço do petróleo em 1985. A reforma prosseguiu durante a era Yeltsin e o primeiro mandato de Putin. A reforma morreu com a disparada do preço do petróleo, que implicou em mudanças na receita de exportações, na conta corrente, nas reservas em moeda estrangeira e na posição fiscal. O boom econômico resultante facilitou tudo para Putin. Entre 2002 e 2005, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu extraordinários 22%. Mas, como nota a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em seu mais recente avaliação econômica sobre a Rússia, o "command GDP" - que inclui os benefícios adicionais do enorme recente aumento nos termos de troca russos (os preços relativos de exportações sobre importações) -, cresceu 38%.

A Rússia hoje e um petro-Estado politicamente centralizado e corrupto. Enquanto isso persistir, a reforma continuará paralisada e o sistema político permanecerá centralizado e opressivo. Essa é a lição não apenas da experiência Rússia, mas mundial.

O preço do petróleo subiu cedo demais durante o processo da reforma, com infelizes conseqüências de longo prazo. O colapso nos preços do petróleo na década de 1980 tornou as reformas necessárias, mas seu atual aumento torna o regime de Putin estável. Quando (ou se) os preços caírem novamente, um novo líder poderá ousar concluir a tarefa de Yeltsin, de transformar a Rússia numa democracia liberal moderna. Precisamos ter esperanças nessa evolução, acima de tudo pelo próprio povo russo. Então, por fim, poderemos também dizer com convicção que sob Yeltsin nasceu uma nova Rússia democrática.