Título: A silenciosa revolução movida a crédito
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 11/04/2007, Especial, p. A18

Uma revolução está em curso pelos grotões do Brasil. É pacífica, já foi tensa e controversa, e o próprio governo a patrocina. Silenciosa, desde o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso ocupa espaços sem alarde e já está presente em 5,357 mil dos 5,561 mil municípios do país. Importante, mas ignorada, nem mesmo o ministério que a executa, o do Desenvolvimento Agrário (MDA), atraiu a cobiça de políticos e a especulação da mídia durante a recente reforma do primeiro escalão do governo do presidente Lula.

Esta revolução é feita com uma arma poderosa: o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), e a abundante munição de R$ 10 bilhões em crédito rápido e barato para a safra 2006/2007. Seu protagonista principal é o pequeno agricultor que, com a família, tira o sustento de um pedaço de terra limitado a 100 hectares na Amazônia e a 32 hectares no Centro-Sul. O objetivo é a inserção no mercado de, no mínimo, 16 milhões de brasileiros, ou 4,1 milhões de famílias. Quase a metade já chegou lá.

O acesso ao crédito do Pronaf, um esforço de melhora das condições de vida no campo a que se engajaram até Estados governados pela oposição, leva alguns de seus beneficiários a entusiasmos próximos do exagero. "O crédito para agricultura familiar, acompanhado, como vem ocorrendo, de assistência técnica, diversificação de culturas, capacitação profissional, sistemas próprios e coletivos de comercialização e estímulo à agroindústria doméstica, vai provocar surpresas no próximo Censo Agropecuário. O êxodo rural pode desacelerar ou até retroceder. Isso já acontece aqui, em algumas regiões do Paraná", disse ao Valor Adão Carlos dos Santos, agricultor familiar que produz leite, ovos, batata, frutas, em 10 hectares no município de Verê, sudoeste do Paraná. Adão é diretor-secretário da Cresol, uma rede de cooperativas de crédito solidário repassadora do Pronaf, com sede em Francisco Beltrão, município de 70 mil habitantes a 90 quilômetros da fronteira com a Argentina e a 500 quilômetros de Curitiba.

"O Pronaf me deu - como se fala mesmo? - cidadania", complementa José da Silva Medeiros, 60 anos, cinco filhos, desde 1998 plantador de açaí e mandioca em 50 hectares no assentamento do Incra Calmaria II, no interior do Pará, município de Moju, separado de Belém pela mata amazônica, por grandes pontes sobre quatro rios navegáveis em balsas, meia dúzia de igarapés e 200 quilômetros de estradas esburacadas. A renda mensal de José era de R$ 400. No ano passado, com financiamento do Pronaf, plantou 1,020 mil ("hoje são 1,019 mil, pois morreu um") pés de palmeira, de cujos frutos a empresa Agropalma, a 20 quilômetros, no município de Tailândia, extrairá óleo de dendê e o transformará em biodiesel. Durante os 30 meses em que a palma ainda não produz os cachos de dendê, José receberá do MDA a ajuda de um salário mínimo por mês. Iniciada a produção, espera renda mensal só com o dendê de, no mínimo, R$ 1,5 mil. "Louvado seja o Senhor!", diz o evangélico José.

"Antes do Pronaf, só entrei num banco para levar recado do meu patrão para o gerente. Hoje, tenho conta, o gerente sabe meu nome. Quando cruza comigo, me faz continência (traduzindo: me cumprimenta)", diz Divino Carmo dos Reis, plantador de café no Córrego do Catalão, município de Santa Margarida (8 mil habitantes na zona rural, 7 mil na cidade) entre as montanhas da Zona da Mata de Minas Gerais, quase divisa com o Espírito Santo, a 280 quilômetros de Belo Horizonte. Há dois anos, perante um júri de cinco provadores profissionais, Divino ganhou o concurso de produtor do café de melhor qualidade da região de Manhuaçu, disputado por agricultores de 22 municípios .

A ausência de um novo Censo Agropecuário (o último se encerrou há 11 anos, exatamente quando o Pronaf começava; o próximo só ficará pronto no ano que vem) impede o balanço preciso da influência do programa na melhora das condições de vida no campo e seu impacto na migração rural. Impede também que se constate o verdadeiro peso da agricultura familiar na economia brasileira. Os dados de 1995-1996, entretanto, indicavam que do total de 4,859 milhões de estabelecimentos agropecuários existentes no país, 4,139 milhões pertenciam ao sistema de produção comandado pela agricultura familiar, ou seja 85%. Esta última ocupava apenas 30,5% das terras, enquanto a "agricultura patronal" - como a ela se refere o MDA - detinha 68% da área e 11% do total dos estabelecimentos. "Apesar disso", diz, em Brasília, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, "a agricultura familiar contribui hoje com cerca de 38% do PIB agropecuário". Dados da Fipe, de 2003, indicavam uma participação de 36,2% da agricultura familiar na produção total da lavoura brasileira (fumo, 97,5%) e de 43,1% na produção da pecuária (aves, 51,2%; leite, 56%; suínos, 53,8%).

"O apoio à agricultura familiar não é só importante para a distribuição de renda e para a democratização da terra. É importante para o desenvolvimento do país. A agricultura familiar mudou, por exemplo, a qualidade do café na Zona da Mata, onde se produzem hoje os mais finos grãos do Brasil", diz o ministro Cassel, gaúcho de Santa Maria.

Com o ministro concorda, em Manhuaçu - hepicentro da produção cafeeira da Zona da Mata e concentração de escritórios de representação das grandes exportadoras -, o agrônomo Bernardino Cangussu Guimarães, gerente regional da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), subordinada à Secretaria da Agricultura de Minas Gerais. Segundo Bernardino, graças ao financiamento do Pronaf e a uma boa parceria Emater-MDA, houve transformação positiva dos hábitos de plantio, capina, tratamento pós-colheita (secagem em terreiro de cimento ou lama asfáltica, por exemplo), resultando na melhora da qualidade do café da região. "O agricultor familiar", disse, "já desfruta a vantagem de preço de R$ 60 por saca entre o seu café bom ou ótimo e o café tipo Rio, de má fama e questionável qualidade".

Divino, solteiro, 42 anos, terceiro ano primário, já fez de tudo, trabalhou na terra dos outros, recebeu como diarista na época da colheita, foi meeiro, e agora, na pequena propriedade de 6 hectares em sociedade com a mãe, cultiva 13 mil pés de café, ao lado de feijão e hortaliças. Vendeu em março, por R$ 250 cada uma, as 100 sacas colhidas e teve resultado líquido anual de R$ 14 mil (descontados insumos, liquidação do crédito de custeio, prestação do crédito de investimento e outras despesas) - ingresso mensal, só com café, de R$ 1,2 mil, acima da atual média salarial brasileira, que é de R$ 1,096 mil, apurada pelo IBGE.

-------------------------------------------------------------------------------- Censo Agropecuário pode mostrar uma desaceleração do êxodo rural no sudoeste do Paraná --------------------------------------------------------------------------------

A casa de Divino, num altiplano com vista para três fios de cascata que brotam da Serra do Caparaó, é de alvenaria (dois quartos, sala, cozinha, banheiro), tem luz elétrica, televisão, DVD, rádio, poço artesiano, água corrente na privada. "A geladeira vou comprar na semana que vem", diz ele. Sob o telheiro ao lado da casa, guarda um fuscão 85, comprado na safra passada. E, num dos quartos, a reluzente Honda de 125 cilindradas, prêmio no concurso de qualidade. Seu primeiro financiamento foi para custeio em 1999: R$ 1,5 mil, a juros de 4% - hoje é de 3% - no chamado Pronaf C (acessível a quem tem renda bruta anual de R$ 3 mil a R$ 16 mil). Depois, cobriu com cimento - que impede, na chuva, a mistura de lama e café - o antigo terreiro de chão batido, com crédito do Pronaf C Investimento (R$ 4 mil, juros de 3% ao ano, prazo de 8 anos, com 5 de carência). Como a renda melhorou, teve acesso ao Pronaf D (renda de R$ 16 mil a R$ 45 mil), e seu financiamento atual, de custeio, é de R$ 4,485 mil. "Poderia ser maior (até R$ 8 mil), mas não é bom ter muita dívida", diz ele. Irmãos, irmãs, primos, primas, cunhados e cunhadas de Divino também plantam café em iguais porções de terra nas redondezas. Na hora da colheita, todos se juntam.

Ao Pronaf podem ter acesso agricultores beneficiados pela reforma agrária e assentados pelo Incra, proprietários, posseiros, arrendatários, meeiros, parceiros, parceleiros ou comodatários que, com mão-de-obra da própria família, trabalhem uma porção de terra inferior a quatro módulos fiscais (a medida de um módulo varia de região para região do país- no Norte pode chegar a 100 hectares; no Sul a 32), e dali tirem predominantemente seu sustento. O trabalho de estranhos à família, com salário/dia discutido com o sindicato, só é permitido excepcionalmente e em tempo de colheita. Para candidatar-se ao financiamento é preciso ter uma Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) que ateste a situação de agricultor familiar, emitida por um sindicato rural do município (vale também o dos grandes proprietários), pela Emater, ou pelo Incra, e apresentar um projeto de aplicação do financiamento. Técnicos da Emater, do MDA ou de cooperativas de crédito como a Cresol ajudam a preparar o projeto.

"Nada no mundo é imune à fraude", diz João Luiz Guadagnin, gaúcho de Nova Prata e diretor de financiamento à produção rural do MDA. "Mas para receber a DAP é preciso comprovar que trabalha no campo junto com a família e que no mínimo 70% de sua renda vêm desse trabalho. Um banqueiro de São Paulo jamais conseguiria uma DAP para seu sítio de fim de semana em Ibiúna. A cada DAP expedida, o nome do beneficiário e o de sua mulher, junto com o CPF, aparecem no site do ministério. Os próprios agricultores denunciarão qualquer impostura".

O risco do Pronaf é do banco ou da cooperativa de crédito solidário que repassa o financiamento. Em 4,2 mil municípios já há uma comissão - composta por agricultores e representantes da prefeitura, do governo do Estado, do MDA - que decide sobre a concessão do crédito e fiscaliza sua aplicação.

E o pagamento dessas dívidas? Em geral, o crédito à agricultura familiar tem performance "em linha" com a do crédito livre no sistema financeiro nacional, cuja taxa de inadimplência estava em 4,9% em fevereiro, segundo o Banco Central. O paranaense Adoniran Peraci, secretário de Agricultura Familiar do MDA, estima que a inadimplência entre as categorias A e B, as mais pobres do Pronaf, pode chegar a 6%, "mas é de 1,8% nos grupos C, D, e E". Nas regiões percorridas pelo Valor , a inadimplência é em torno de 3% no Pará, e de 5% no Paraná (conseqüência da estiagem dos dois últimos anos; em 2007, com safra abundante e melhores preços, o índice pode baixar). E a Zona da Mata de Minas acaba de comemorar a marca de zero porcento de inadimplência entre agricultores familiares. O pagamento rigorosamente em dia é premiado pelo Pronaf com um "rebate", abatimento da dívida, normalmente de 25%, mas em alguns cultivos, como o do dendê, pode chegar a 40%.

O Pronaf não é de hoje. Foi criado no governo de Fernando Henrique Cardoso (em julho de 1996), como adaptação, revista e ampliada, do Programa de Valorização da Pequena Produção Rural (Provap), implantado em 1994 pelo presidente Itamar Franco. Eram anos de grande agitação no meio rural, que culminou com o "grito da terra", uma série de marchas sobre Brasília organizadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Movimento dos Sem Terra (MST) . O Provap e o Pronaf foram uma reação do governo a agricultores familiares que engrossavam as manifestações e reclamavam contra as regras então vigentes que os consideravam "miniprodutores", submetidos às mesmas exigências que os grandes para acesso ao crédito rural - ou seja, tinham pouca ou nenhuma chance. Os recursos do Provap e do Pronaf vinham inicialmente do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Fundo Constitucional de Desenvolvimento do Centro-Oeste (FCO). Mas já havia a intenção de dar tratamento desigual aos desiguais. E isso constituiu um avanço que até os críticos do governo FHC reconhecem.

Em favor dos pequenos, por exemplo, o governo acusado de neoliberal adotou a equalização de juros, eufemismo para o subsídio autorizado pelo Conselho Monetário Nacional, enquadrado pelo Banco Central e assumido pelo Tesouro. Na prática, houve progressos na concessão do financiamento, mas este se concentrou no Sul do país, com pálido desempenho nas outras regiões. Em 2002, na entrega do governo, o Pronaf registrava um acumulado de 953 mil contratos, com R$ 2,4 bilhões de financiamento - um atraso de cinco anos no cumprimento da meta em dinheiro prometida para 1997.

Em 2003, os que gritavam na direção do Planalto entraram no Planalto. Grande parte deles (especialmente da tendência Democracia Socialista do PT) viu-se por trás das vidraças do Bloco A da Esplanada, ao lado da Catedral de Niemeyer, um prédio superpovoado de ministérios, secretarias e subsecretarias, que passou a ser chamado de Xis-Tudo. CUT e Contag foram juntas. Lá fora, ficou o MST, cujo foco de atuação permanece voltado para a distribuição de terras.

Talvez, por isso mesmo, políticos e mídia continuaram atentos à parte mais conflitiva do MDA - a sua porção Incra -, o setor do ministério que se ocupa de mais ou menos 600 mil famílias de agricultores sem terra - 381 mil assentadas até o ano passado, o restante ainda por decidir. Os assentados mais antigos, aliás, já começam uma vida de agricultores familiares, têm acesso aos Pronaf A, B e A/C, e alguns conseguem migrar para categorias de renda mais alta.

Atrai pouca atenção, entretanto, o que acontece com um número muito mais expressivo de famílias, as de pouca terra. Foi com elas que se ocupou a porção SDA (Secretaria da Agricultura Familiar, do MDA), cuja tranqüilidade para trabalhar é apenas, e às vezes ruidosamente, perturbada pelas lutas internas do PT e alguma divergência com o Ministério da Agricultura (gestão Roberto Rodrigues) sobre o modelo de exploração do potencial agrícola brasileiro.

O novo governo manteve a estrutura do Pronaf de FHC e introduziu-lhe modificações, diminuiu juros, ampliou prazos, criou novas modalidades de financiamento (Pronaf-Jovem, Pronaf-Mulher, Pronaf-Agroindústria, Pronaf-Floresta, Pronaf-Agroecologia), ampliou seu "funding" (todos os Fundos Constitucionais, Tesouro, FAT, BNDES, BNB, Basa, BRDE), exigiu que bancos apliquem 8% de seus depósitos a vista no crédito à agricultura familiar. E expandiu o Pronaf para todo o país. A participação do Sul, que era de 55% em 2002, baixou para 39%, a do Nordeste subiu de 15% para 26%, no ano civil de 2006. Mas continua fraca e até diminuiu (7,8% em 2002; 6,2% em 2007) a participação do Centro-Oeste no total dos desembolsos. Em 2006, o Pronaf liberou um total de R$ 7,408 bilhões. E até a semana passada acumulava R$ 24 bilhões de financiamentos desde o início do governo Lula (R$ 26,3 bilhões é o total da história do Pronaf).

Apesar dos tropeços e de alguma improvisação, a estratégia do governo no tratamento da desigualdade no campo já mostra resultados positivos. Segundo Adoniran Peraci, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, "faz muito sentido e tem um rumo" a divisão de trabalho social no governo Lula: o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome cuidaria da miséria, com o Bolsa Família e outros programas. O MDA, da pobreza, com os Pronaf A e B (renda bruta anual de até R$ 3 mil), e, com o Pronaf C (renda de R$ 3 mil até R$ 16 mil), prepararia a transição para as categorias D e E, (teto de renda de R$ 45 mil e R$ 80 mil respectivamente), onde se situa o que se poderia considerar classe média baixa do meio rural.

Desde janeiro de 2003, o Pronaf contratou 6,360 milhões de operações de crédito: muitas delas são de agricultores que se candidataram a novos financiamentos (de custeio, principalmente) e, em sua maioria, se mudaram para um patamar mais alto de renda, numa demonstração de que algo positivo acontece no meio rural. E a escalada pode continuar, se o novo ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, colocar em prática a prioridade, anunciada em sua posse, de apoio ao agricultor com renda familiar imediatamente acima de R$ 80 mil. Stephanes fixou o piso de suas preocupações no teto das preocupações do MDA.

Esta é a primeira de uma série de três reportagens sobre o financiamento à agricultura familiar no Brasil. A segunda reportagem - o dendê como instrumento de melhora de renda no Pará - será publicada amanhã.