Título: Governo anuncia hoje quebra de patente de remédio anti-aids
Autor: Leo, Sergio e Lyra, Paulo de Tarso
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2007, Brasil, p. A4

O governo anuncia hoje, em cerimônia no Palácio do Planalto, a decisão de licenciar compulsoriamente a venda, no Brasil, do medicamento usado no tratamento da aids Efavirenz, cuja patente pertence ao laboratório Merck-Sharp&Dohme. Com a medida, o país poderá comprar um medicamento genérico equivalente ao Efavirenz, de laboratórios da Índia, por menos de um terço do preço pago atualmente, o que, segundo calcula o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, garantirá uma economia de US$ 30 milhões anuais para o ministério.

A decisão poderá ser suspensa se houver algum acordo de última hora com a Merck, e a empresa, ontem à noite, ainda relutava em comentar a decisão. "Esperamos que, no último momento, o bom senso prevaleça e não seja necessária essa medida", comentou para o Valor o diretor de Comunicação da empresa, João Sanchez. Ontem à noite, assessores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva informaram ao Valor que o presidente estaria disposto a suspender a decisão, caso a empresa oferecesse um acordo "aceitável" até o horário da cerimônia de anúncio do licenciamento compulsório, prevista para o meio-dia de hoje.

João Sanchez argumentou que a empresa já ofereceu um desconto de 30% sobre os preços atuais do Efavirenz, que se somaria a uma redução de preços de 77% desde o lançamento do produto, em 1998. "É um desconto extremamente favorável", argumentou. "Alegar o interesse público em uma situação como essa cria uma incerteza grande e insegurança em relação ao marco regulatório no setor". Só a Tailândia, "uma ditadura", lança mão de licenciamento compulsório hoje em dia, argumenta o executivo da Merck.

Para o ministro Temporão, que ontem ainda se reuniria à noite com o presidente e outros ministros envolvidos na decisão, a economia de US$ 30 milhões na compra do produto permitirá ao país dirigir essas verbas para tratamentos "caríssimos" de pacientes de aids com doenças oportunistas, como a tuberculose ou com hepatite. Ele argumenta que o Brasil usa uma prerrogativa permitida pelo acordo sobre propriedade intelectual (Trips, na sigla em inglês) da Organização Mundial do Comércio (OMC), que prevê o pagamento de royalties à empresa que terá sua patente licenciada compulsoriamente.

O desconto oferecido pela Merck baixaria o preço da cartel de medicamento, de US$ 1,59 para cerca de US$ 1,10; os indianos venderão por US$ 0,45, espera o ministro. As empresas indianas que fornecerão ao Brasil são pré-qualificadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e poderão iniciar a venda dos produtos imediatamente, sem risco de interrupção no tratamento dos doentes, explicou Temporão.

A decisão de licenciamento compulsório, segundo o ministro, foi tomada pelo governo, com participação também da Casa Civil, da Advocacia geral da União e do Ministério das Relações Exteriores, depois de pelo menos nove reuniões com a empresa, uma delas do próprio Temporão e do ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, com o presidente da Merck no Brasil, Oscar Ferenczi - na qual o executivo fez a primeira oferta de desconto, de "apenas" 2%, segundo o ministro.

As propostas de desconto no preço e de contratos de transferência de tecnologia eram "totalmente inadequadas" na avaliação de Temporão. Ele se queixa de que a segunda proposta de redução de preços e transferência de tecnologia, apresentada na noite de sexta-feira passada, não deixa claro se o país será obrigado a comprar matéria-prima apenas da Merck, ou poderá buscar melhores preços em outros fornecedores.

"Para o Brasil, também é absolutamente fundamental que, ao fim do processo de transferência de tecnologia, o país tenha autonomia para comercializar os produtos genéricos com quem bem entender", acrescentou o ministro, que criticou a falta dessa definição na proposta da Merck. "Nos termos em que a transferência estava colocada era absolutamente impossível uma análise séria."

"Mandei carta à Merck dizendo, em duas páginas, que a proposta deles não atendia ao interesse público e às expectativas do governo brasileiro", contou Temporão. "O Brasil, neste momento tem vários contratos de transferência de tecnologia com empresas multinacionais de ponta, como a GlaxoSmithKline (com Farmanguinhos) e a Aventis (com o Butantan) e temos projetos de ampliar essa estratégia", mencionou o ministro.

Outros sete produtos anti-aids, do coquetel de 15 medicamentos, ainda são protegidos por patentes, mas o Brasil decidiu licenciar compulsoriamente o Efavirenz porque é usado em 77 mil pacientes e é o mais utilizado, devido à facilidade que traz ao tratamento, com menos efeitos colaterais e a dispensa de outros remédios. "A tendência é se ampliar o uso desse medicamento", prevê o ministro. Outro medicamento muito usado, o Kaletra, que não tinha alternativas genéricas, passou a ser comprado com desconto próximo a 50%, lembra ele.

A Merck alega que o preço do Efavirenz já é o mais baixo do coquetel anti-aids, e, apesar de ser fornecido a quase 42% dos pacientes, representa só 17% do gasto total. "O Brasil vai pagar 1,5% de royalties pelo remédio; se o laboratório considerar inadequado, pode recorrer", diz Temporão.