Título: "Se a bandeira do aborto entrar em pauta, vamos trombar de frente"
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2007, Especial, p. A16

Expoente da enfraquecida ala progressista da Igreja Católica, dom Angélico Sândalo Bernardino foi removido nos anos 90 da Zona Leste paulistana para a diocese de Blumenau, dentro da política do então papa João Paulo II de tornar mais conservador o episcopado das grandes metrópoles. Desde o início do governo Lula, pede paciência aos movimentos sociais para a política econômica conservadora do presidente. Mas a retomada de temas como o aborto fez o prelado se exaltar contra o governo, na entrevista dada ao Valor que se segue abaixo:

Valor: O governo federal dá sinais que pretende introduzir uma nova agenda de temas, onde a legalização do aborto poderá ser discutida. Isto pode afastar ainda mais a Igreja Católica do governo?

Dom Angélico Sândalo Bernardino: Também houve tempo em que no mundo se discutiu o descarte dos velhos e a eliminação dos doentes mentais. Sobre este assunto não pode haver transigência, a postura da Igreja tem sido sempre a mesma. Não adianta o ministro Temporão (José Gomes Temporão, ministro da Saúde) falar que está preocupado com as mortes em abortos clandestinos. É um sinal de que o governo não se preocupa com a saúde em termos globais. Se a discussão sobre isto for admissível, dentro em pouco outras coisas virão.

Valor: Podemos então prever um choque de posições?

Dom Angélico: Ah, se o governo realmente levantar esta bandeira, e eu ainda tenho dúvidas se o governo vai de fato levantar esta bandeira, vamos trombar de frente.

Valor: Porque o senhor ainda coloca dúvidas?

Dom Angélico: Não sei se a palavra deste ministro Temporão, que faz juz ao nome, porque está chegando agora com propostas fora de hora, representa o pensamento de um conjunto tão complexo como o governo. Precisamos aguardar.

Valor: As divisões da Igreja em relação a questões ideológicas podem ficar em segundo plano, diante de uma ameaça maior, caso o governo leve adiante esta política?

Dom Angélico: Sobre esta temática, não existem dissidências dentro da Igreja, do episcopado. Seja de que corrente for, nós realmente não admitimos, sempre houve união a respeito.

Valor: A adoção deste enfoque por parte do governo decepciona a ala da Igreja historicamente vinculada à aliança que hoje está no poder.

Dom Angélico: Veja, há uma questão que transcende isso, que é o sentimento popular. Um dos motivos pelos quais eu desconfio que a discussão sobre estes temas será efêmera é que eles estão contra o sentimento popular, que coincidem com o sentimento da igreja. O ministro da Saúde quer promover um plebiscito sobre o aborto. Sou contra o plebiscito, mas não tenho dúvida de que, pelo menos se a votação fosse hoje, o povo votaria contra. Ainda que admita que isso possa mudar, no contexto de uma campanha , me parece que o que o povo brasileiro realmente quer, e quer há muito tempo, é mais reforma agrária e educação. O povo quer o avanço da reforma política. Porque não introduzem estes temas na agenda?

Valor: Porque não o fazem?

Dom Angélico: Acho que esta temática é uma onda nos países do Ocidente, fruto de uma sociedade permissiva, onde os interesses econômicos prevalecem. Veja a questão do combate à Aids, por exemplo. Fazer a prevenção sempre é uma atitude sadia, mas ao não se estimular uma discussão sobre o papel do sexo na sociedade atual e dar toda ênfase ao uso dos preservativos, interesses econômicos poderosos estão sendo favorecidos.

Valor: Lula compareceu à Assembléia da CNBB em 2003, uma deferência inédita na história republicana das relações entre governo e Igreja. Transcorridos cinco anos de gestão, o governo Lula o decepciona?

Dom Angélico: Eu esperava que no governo Lula estivéssemos mais avançados nas políticas sociais, na saúde, na educação, na reforma agrária. Mas o presidente americano John Kennedy uma vez advertiu do risco de se atribuir ao governo um somatório de forças que ele não tem. Os grandes conglomerados econômicos nacionais e internacionais muitas vezes se sobrepõem ao poder Executivo. O Estado no Brasil foi reduzido em sua capacidade e se submete ao poder financeiro. (CF)