Título: O Poder Judiciário e o ativismo judicial
Autor: Paola, Leonardo Sperb de
Fonte: Valor Econômico, 10/05/2007, Legislação & Tributos, p. E2

Há uma crescente percepção de que o Poder Judiciário vem ultrapassando as competências que lhe foram outorgadas pela Constituição Federal, para atuar na formulação e implementação de políticas públicas as mais diversas: eleitorais e partidárias, de educação, saúde, privatização etc. Passa da aplicação do direito (no sentido mais amplo, bem entendido, não estritamente legalista) à criação do direito. Usurpa, não raro, a função tipicamente legislativa. Bem verdade que isso se deve, em parte, à inação do Poder Legislativo, que, ao invés de legislar, investiga, por meio de CPIs. Mas decorre principalmente da progressiva infiltração de uma ideologia que prega a maior intervenção do juiz na correção de mazelas sociais, econômicas e políticas. Ideologia esta conhecida como ativismo judicial.

Não se trata de fenômeno exclusivo ao Brasil: nos Estados Unidos e na Europa formaram-se também poderosas correntes em prol de um Poder Judiciário mais participante. Em solo europeu, ganhou força o chamado direito alternativo, que, em um segundo momento, foi recepcionado no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul.

O ativismo ou voluntarismo aparece dissimulado sob a forma da aplicação de princípios e de lugares-comuns argumentativos (os "topoi" dos gregos e "loci" dos romanos). Na primeira categoria, assumem especial importância, a partir de uma mal digerida assimilação de doutrina e jurisprudência americana e alemã, a proporcionalidade, razoabilidade e devido processo legal material, ora tratados como sinônimos, ora apartados entre si por sutis distinções. No âmbito contratual, têm igual relevância os princípios da boa-fé e do equilíbrio, invocados para temperar e, muitas vezes, obliterar e destruir a autonomia contratual. Já os lugares-comuns, especialmente o da hipossuficiência (do consumidor, do trabalhador etc), são adotados para nortear a interpretação das leis - eufemismo que esconde, muitas vezes, a pura e simples adulteração do sentido das regras vigentes, quando não criação de novas regras.

-------------------------------------------------------------------------------- Princípios usados com cautela transformam-se em moeda-corrente no Brasil, aumentando a insegurança jurídica --------------------------------------------------------------------------------

O problema não está tanto no reconhecimento e aplicação desses princípios e lugares, mas na absurda freqüência com que, aqui, são invocados e utilizados para pôr de lado a aplicação de regras jurídicas vigentes. A razoabilidade é utilizada sem razão e, assim, ao invés de ser um instrumento para coibir abusos dos demais poderes, passa a encobrir abusos do Poder Judiciário, e a proporcionalidade é adotada de forma desproporcional. Com isso, teorias, doutrinas e princípios que são usados com bastante cautela nos sistemas jurídicos de onde são originários transformam-se em moeda-corrente no Brasil, contribuindo para aumentar o estado de insegurança jurídica. No fundo, boa-fé, razoabilidade e proporcionalidade, pela sua vagueza, tornaram-se massa de moldar nas mãos do juiz - palavras mágicas cuja mera invocação supre a necessidade de argumentar e de embasar juridicamente as decisões. Ou seja, palavras que acobertam o voluntarismo.

Um grande equívoco por trás de tudo isso reside na idéia de que também cabe ao Judiciário fazer justiça social: se o legislador é displicente, se o administrador público não desenvolve políticas públicas adequadas em prol da população mais carente, então o juiz deve atuar na correção das desigualdades. Sucede que o Judiciário não conta com os instrumentos hábeis a esta atuação, não está aparelhado para, na decisão de casos individuais, ponderar, em termos macro, os prós e contras de seus julgamentos, fazer uma análise das conseqüências de suas posições. Quando, por exemplo, no processo de retomada de um imóvel financiado, por inadimplemento do mutuário, o juiz protege o devedor, desconsiderando tanto a letra do contrato como a da lei, o que faz é ato de caridade à custa alheia (do credor), e não de justiça ou mesmo de eqüidade. E essa caridade individual, multiplicada em milhares de processos, acaba por, paradoxalmente, gerar uma injustiça social. Isso porque a maior dificuldade em fazer cumprir contratos tende a aumentar o custo desses contratos, e, na pior das hipóteses, a reduzir ou mesmo eliminar sua realização. E quem sofre com isso, em última análise, são justamente as pessoas mais necessitadas de crédito. Justiça social demanda medidas governamentais coletivas, com ponderação de custos e benefícios, prós e contras.

Por mais prosaico que isso possa parecer, é preciso recuperar, na aplicação do direito, as idéias de legalidade e de autonomia contratual, consideradas inatuais por uma certa facção doutrinária, autodenominada progressista. Mas temperadas, é claro, pela prudente e restrita aplicação dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, boa-fé e equilíbrio contratual; partir das normas e não abandoná-las na primeira oportunidade, sob qualquer pretexto. Enfim, voltar à lei e ao contrato, sem o quê não há segurança jurídica. Isso não significa retroceder à dogmática do século XIX, mas manter dela o que tem de bom e ultrapassar suas deficiências e limitações.

Leonardo Sperb de Paola é advogado, sócio do escritório Rivera & De Paola Advogados e professor de direito da FAE Business School

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