Título: Para combater a esmola
Autor: Ananias, Patrus
Fonte: Valor Econômico, 09/05/2007, Opinião, p. A10

O combate à esmola tem sido uma das vertentes das campanhas contra a exploração de mão-de-obra infantil, inclusive servindo como uma ponte de conversa com a sociedade e mesmo de mobilização e conscientização em torno do problema.

Há muitas maneiras de combater a esmola. Uma delas parte da própria condenação do ato de dar esmolas, considerando basicamente dois pressupostos: primeiro, que a condição da existência da esmola - a desigualdade - é indigna; segundo, porque, na perspectiva republicana, as pessoas que necessitam de ajuda devem ser assistidas por políticas públicas permanentes e normatizadas e não podem depender de favores.

Essas condições nos remetem a uma reflexão: para haver condenação do ato de dar esmolas é necessário ter certeza de que temos as condições sociais para eliminá-las. A primeira condição é o fim da desigualdade social. Mas isso, entre nós, ainda é uma realidade em construção, alcançada por um caminho que estamos trilhando, calçando com vigorosas políticas, mas ainda não é fato. Precisamos então verificar se temos as políticas sociais estruturadas adequadamente de modo que as pessoas necessitadas possam ter a devida ajuda do Estado. Esse é um dos propósitos da estruturação e consolidação da ampla rede de proteção e promoção social em torno da qual estamos trabalhando no governo federal. É uma rede formada por políticas normatizadas em lei, amplamente discutidas com a sociedade, com objetivos, normas, procedimentos e metas definidas por critérios objetivos. No entanto, para que essa rede republicana funcione efetivamente, é fundamental a adesão e participação de todos os entes federados para que as políticas cheguem, efetivamente, àqueles que mais precisam.

A crítica da esmola é pertinente na medida em que denuncia as condições sociais que permitem sua existência e que evidenciam o seu lado indigno. Mas devemos cuidar para que essa crítica não resvale para crítica ao ato de ajudar o próximo. Há um significado importante da esmola e o resgate de sua essência, dando a ela o devido lugar que ocupa na construção de valores de fraternidade e solidariedade, é outra maneira de combater a falta de indignidade que reside no ato de dar ou receber esmolas.

No contexto religioso, a esmola guarda a dimensão de combate a injustiça. Na quaresma de 1979, o Papa João Paulo II lembrava que essa abordagem é mesmo anterior ao evangelho, indicando o caminho para Deus. Em hebraico, a palavra utilizada, como observou o Papa em seu texto, é "sedaqah", que significa "justiça". Nas traduções do Novo Testamento, a palavra em grego, "eleemosyne", vem "eleos", que significa compaixão e misericórdia.

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A perda das referências ética, moral e social conferida dentro da tradição cristã tem contribuído para reforçar o papel imobilizador e indigno da esmola porque, na origem, ela é a expressão de uma prática de compartilhamento, de doação, de fraternidade, de solidariedade. Para São Francisco de Assis e seus seguidores, a esmola significava estar no lugar onde estavam todos os excluídos - doentes, leprosos, mendigos, mulheres e crianças.

São várias as passagens do Evangelho onde Jesus se aproxima dos excluídos e exalta o valor da partilha, da ajuda, da fraternidade, da misericórdia, da "eleemosyne". A mais conhecida passagem está na imagem do Juízo Final descrita por Mateus: "Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber; era peregrino e recebestes-me; estava nu e destes-me de vestir; adoeci e visitastes-me; estive na prisão e fostes ter comigo". Então, os justos responder-lhe-ão: "Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?". E o Rei dir-lhes-á em resposta: "Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes" (Mt. 25, 35-40).

Outra passagem do Evangelho, em Lucas, descreve o exemplo da viúva pobre que deixa no templo, em esmola, tudo o que tinha para viver. E Jesus observa o gesto, dizendo que era a maior das esmolas porque não havia sido tirada do supérfluo. Era a verdadeira partilha entre os pobres. A esmola, na dimensão transformadora do amor cristão, não é aquela que é retirada das sobras. É o próprio compartilhamento. É a própria indignação diante das diferenças. Os pobres não merecem as sobras. O que é necessário é acabar com a pobreza e tirá-los da condição de necessidade. A esmola tem de ser antes uma ponte de diálogo com os pobres, como prega a tradição franciscana pautada pelos princípios evangélicos, uma forma de conhecer o outro, de saber de suas necessidades e se aproximar dele. Se, ao contrário, for entrega de sobras e, assim, ser uma fuga do contato com os pobres, não tem nenhum valor e se inscreve na perspectiva da humilhação porque deixa a falta mais evidente.

No mesmo princípio fundador da esmola misericordiosa, vamos encontrar o argumento para discutir a função social do lucro e da propriedade, a necessidade de dividir, de compartilhar, de formar uma sociedade mais justa, onde não seja necessário rogar por esmola, onde não haja submissão e inferioridade de um cidadão diante do outro.

Não nos esqueçamos que a esmola, em toda sua história que remonta a tradição judaico-cristã - e também de outras religiões - é um gesto de momento. Portanto, temos de reconhecer que uma grande conquista dos nossos tempos, do Estado Democrático de Direito, é o fato de hoje permitirmos que o atendimento das necessidades básicas das pessoas não sejam movidas por momento, mas que sejam um compromisso solidário de todas as pessoas para assegurar o acesso regular e constante a todos os serviços e direitos necessários à dignidade humana: alimentação, segurança econômica, assistência social, trabalho, saúde, educação, moradia etc. A maior justiça que podemos alcançar com esse ideal de fraternidade é ter Estado e sociedade compartilhando bens e valores na construção de um projeto de nação que promova o mais forte sentimento de pertencimento, de pátria.

Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.