Título: Lei no papel, pedófilo na rua
Autor: Sassine, Vinicius
Fonte: Correio Braziliense, 17/12/2010, Brasil, p. 10

VIOLÊNCIA SEXUAL Relatório final da CPI lista todas as propostas elaboradas para combater os abusos contra crianças, mas mostra que apenas uma acabou aprovada e sancionada. Lentidão no trâmite e brechas jurídicas impedem a punição dos criminosos

Apenas um dos 19 projetos de lei apresentados ou encampados pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia foi aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em quase três anos de existência da CPI no Senado. As outras 18 propostas de aperfeiçoamento do combate à exploração sexual infantil estão longe de se transformar em lei. São, por enquanto, apenas rascunhos, dependentes de aprovação no plenário da Câmara ou do Senado. O relatório final da CPI, que relaciona todos os projetos de lei em análise no Congresso, foi apresentado e aprovado ontem.

A repressão ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil esbarra numa legislação cheia de falhas, com diversas brechas que vêm permitindo a impunidade da maioria dos agressores. As principais lacunas referem-se à internet, instrumento utilizado por redes de pedófilos para concretizar o crime de abuso sexual.

O relator da CPI da Pedofilia, senador Demostenes Torres (DEM-GO), não pediu o indiciamento de nenhum investigado no texto final aprovado ontem. Em compensação, o relatório cobra a aprovação e a sanção de 13 projetos de lei protocolados no Senado pela CPI nos últimos três anos. Outras seis propostas, que tramitam no Congresso pelo menos desde 2005, são endossadas no relatório final da CPI. Para o relator, esses projetos são fundamentais ao combate efetivo à pedofilia.

A demora em analisar projetos decisivos para repreender o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes faz com que as propostas caduquem, percam validade diante da aprovação de outros dispositivos em tramitação no Congresso. ¿Alguns projetos serão considerados fatalmente dispensáveis, pois já conseguimos a aprovação de dispositivos em outras propostas¿, afirma o senador Demostenes Torres.

MUDANÇAS ESSENCIAIS

CPI da Pedofilia apresentou diversos projetos de mudança na lei e endossou outras propostas já existentes para aperfeiçoar o combate à exploração sexual infantil:

Projetos apresentados

» Nº 250, de 2008 Possibilita decretar prisão preventiva de pedófilo estrangeiro em via de ser extraditado, mesmo sem ser situação de flagrante.

» Nº 275, de 2008 Adultos que se aproveitam sexualmente de crianças e adolescentes passam a ser punidos, e não somente quem submete um menor à exploração sexual.

» Nº 234, de 2009 O prazo para a prescrição de um crime de abuso sexual começa a ser contado a partir dos 18 anos de idade da vítima, se o crime ainda não tiver sido denunciado.

» Nº 236, de 2009 A lei brasileira se aplica incondicionalmente a agressores sexuais de crianças brasileiras que vivem em outros países.

» Nº 235, de 2009 Fica vedada a concessão de visto a estrangeiros indiciados em outros países por crimes contra a liberdade sexual.

» Nº 100, de 2010 Permite a infiltração de agentes da polícia na internet com o fim de investigar crimes contra a liberdade sexual de crianças e adolescentes.

Projetos endossados pela CPI

» Nº 165, de 2007 Prevê o monitoramento eletrônico de presos.

» Nº 338, de 2009 Cria um banco de dados de pedófilos condenados pela Justiça, com todos os dados pessoais disponíveis para qualquer um acessar.

» Nº 156, de 2009 Institui o depoimento sem dano, em que vítimas não precisam reviver o drama do abuso sexual.

» Nº 278, de 2009 Altera critérios de escolha de conselheiros tutelares no âmbito municipal.

A COMISSÃO EM NÚMEROS

1.696 páginas tem o relatório final da CPI

33 meses de investigações

10 prisões foram efetuadas

75 reuniões ordinárias

484 requerimentos foram aprovados

900 denúncias recebidas no âmbito exclusivo da CPI

PROJETOS IMPORTANTES PARADOS

Um dos principais avanços da legislação que protege crianças e adolescentes, conquistado a partir de uma sugestão da CPI da Pedofilia, foi exatamente a única sanção registrada durante o período de investigação. Uma alteração no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ampliou a possibilidade de punição aos pedófilos brasileiros. Antes, apenas a transmissão de material pornográfico pela internet era considerada crime. Desde novembro de 2008, armazenar conteúdo de pornografia infantil também é crime, o que ampliou o poder de ação das operações da Polícia Federal (PF).

Os dois projetos mais importantes, e que dependem de aprovação, na visão do presidente da CPI da Pedofilia, senador Magno Malta (PR-ES), são o da ¿difusão vermelha¿ e o que vem sendo chamado de Lei Joanna Maranhão. O primeiro altera a legislação para permitir a prisão preventiva de um estrangeiro acusado de abuso sexual e em fase de extradição. Pela lei em vigor, a polícia não pode efetuar essa prisão, a não ser em situação de flagrante. O segundo foi inspirado no drama da nadadora Joanna Maranhão, de 23 anos. Depois de adulta, ela decidiu revelar que foi abusada por seu ex-treinador, quando tinha 9 anos (leia entrevista ao lado). O crime prescreveu e, hoje, Joanna é processada pelo ex-treinador. A nadadora esteve ontem no Senado para a aprovação do relatório final da CPI.

Nome exposto A Lei Joanna Maranhão, se for aprovada e sancionada, estabelecerá que o marco inicial para o prazo da prescrição do crime é a idade de 18 anos da vítima. Assim, uma criança ou adolescente vítima de abuso sexual que decidir denunciar o agressor ainda não delatado à polícia terá mais tempo para tomar essa iniciativa em sua vida adulta. Hoje, o prazo é de seis meses a partir do aniversário de 18 anos.

A CPI também tentou eliminar uma das brechas na legislação que mais rende absolvições pelo Judiciário nos casos de abuso e exploração sexual infantil. A lei diz que deve ser punido quem ¿submeter¿ crianças e adolescentes à violação sexual, o que pressupõe, na visão de alguns juízes, a condição de exploração, quando um adulto obtém vantagem econômica do abuso sexual ¿ um caso de prostituição infantil, por exemplo. Pelo teor do projeto apresentado, deve ser criminalizada ¿a conduta de quem se aproveita sexualmente de adolescentes expostos à prostituição, exploração sexual ou abandono¿.

Outros projetos estabelecem regras mais duras para a liberdade condicional de agressores sexuais, prazos maiores para o fornecimento de dados de informática à polícia e maior rigor na progressão de regime de prisão para quem pratica a pedofilia. Todas essas propostas estão em fase de tramitação, assim como os projetos que já existiam e que foram endossados pela CPI da Pedofilia. É o caso do projeto de lei de autoria da senadora Marisa Serrano (PSDB-MS), divulgado ontem pelo Correio, que propõe a divulgação num site do governo federal do nome completo, endereço da casa e do trabalho e foto colorida de pedófilos condenados pela Justiça. Inspirada nos Estados Unidos, onde guetos de agressores sexuais começaram a se formar, a proposta é criticada por diferentes setores da sociedade.

Estatística O relatório final da CPI da Pedofilia detalha 11 casos específicos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, a maioria deles envolvendo prefeitos, vereadores, deputados, juízes e religiosos. A situação mais grave é no estado do Pará, onde redes de prostituição infantil se espalham principalmente no interior do estado, como cita o relatório. Entre as recomendações feitas, diante do baixo número de inquéritos instaurados para apurar pedofilia pela internet, está a realização de um levantamento estatístico pelo Ministério Público nos estados. (VS)

TRÊS PERGUNTAS PARA Joanna Maranhão, nadadora, 23 anos Denunciou que foi abusada sexualmente pelo treinador aos 9 anos

O que você acha da proposta de lei que leva o seu nome? Eu acredito que essa lei é muito importante. A criança que sofre abuso espera chegar à fase adulta para entender o que está acontecendo.

Como foi especificamente no seu caso? Eu recalquei muita coisa. Precisei de terapia para me lembrar de tudo. Tentava buscar a lição desse abuso sexual. Não entendia o porquê.

E como foi denunciar o abuso? O primeiro momento em que verbalizei tudo foi muito doloroso. Tive crises de choro. Sempre que falo sobre isso, ainda é doloroso.