Título: O "causo aéreo"
Autor: Castro, Paulo Rabello de
Fonte: Valor Econômico, 04/04/2007, Opinião, p. A12

Em Minas, caso é "causo". E caos, o que é? Caos é a desordem absoluta, o completo embaralhamento de cartas, a mistura total de causas e efeitos. Uma situação de caos, como a do setor aéreo, em geral começa por vários "causos", que vão se acumulando até desembocar numa grande crise anárquica. Na origem de tudo, não há como esconder a responsabilidade direta de Brasília pela desordem reinante.

O setor de aviação civil é atividade inteiramente regulada pela autoridade federal, no caso a Anac, uma agência reguladora que veio substituir o Departamento de Aviação Civil (DAC), braço do Ministério da Defesa. Segundo o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7565/86) - um detalhadíssimo diploma legal, que conforma todas as regras de funcionamento da atividade aérea civil - o ministro da Defesa é quem responde pela estabilidade da prestação dos serviços aéreos comerciais e pela atuação das empresas prestadoras. Ele tem, entre outros poderes, o de intervenção, "para sanear o serviço".

O tráfego aéreo também é federalmente regulado, e os controladores de vôo nas torres dos aeroportos envergam uniformes militares. Os aeroportos no Brasil, que um dia já foram da iniciativa privada (Grupo Panair), acabaram estatizados, sendo hoje administrados por uma empresa federal, a Infraero. O combustível também é suprido majoritariamente por outra estatal, a Petrobras.

Ao longo das últimas décadas, portanto, o Estado brasileiro fez-se presente em todos os aspectos da aviação civil, açambarcando responsabilidade completa pelo sucesso da atividade, inclusive intervindo diretamente sobre dois elementos críticos: o preço da passagem aérea, várias vezes congelado, gerando créditos a recuperar pelas aéreas prejudicadas e, em muitas ocasiões, majorado por taxas, as mais esdrúxulas, destinadas a financiar de tudo um pouco à custa do usuário; e, em segundo lugar, a previdência complementar de aeroviários e aeronautas, por cuja saúde financeira cabe ao Poder Executivo regular, fiscalizar e zelar (Lei Complementar 109/2001 ).

De onde, então, surgiu o atual caos aéreo, senão do berço esplêndido do Estado, que mora em Brasília? O "causo" aéreo tem suas raízes fincadas em múltiplas e interligadas interferências, todas negativas e desastradas, do poder público sobre o setor. Para não ir mais longe, fixemos-nos apenas na evolução da oferta e da demanda, por assentos em vôos, nos últimos cinco anos, período em que a então maior companhia aérea brasileira, a Varig, com domínio de cerca de 60% dos trechos internacionais e de mais de 40% do mercado doméstico, passou a apresentar sintomas de profunda desorganização financeira e corporativa.

Ainda em 2002, um estudo interno do BNDES identificava como empresas "doentes" a Varig e a Vasp e, como companhias "sadias", a TAM e GOL. Ao início do primeiro mandato de Lula, em 2003, a situação era de sobre-oferta de assentos por causa da recessão causada pelos atentados de 11 de setembro e pelo dólar nas alturas. O recém-inaugurado governo resolveu, então, patrocinar o chamado "Code Share" (vôos compartilhados) entre Varig e TAM para acomodar a oferta excessiva nas linhas domésticas, quando, de fato, o que se almejava já era a alteração do domínio do mercado, caracterizado, primeiro, pela tentativa de fusão entre as duas aéreas e, em seguida, pela arquitetada "liquidação extrajudicial" da Varig, com a cessão de suas rotas e concessões para as ditas empresas "sadias".

-------------------------------------------------------------------------------- A malha aérea dependia de um ataque aos problemas da Varig, mas a autoridade apesar de instada a agir, permaneceu inerte --------------------------------------------------------------------------------

Uma combativa reação dos milhares de aeronautas e aeroviários da Varig, nas ruas e nos gabinetes em Brasília, impediu a consumação do pretendido "rearranjo do mercado", cuja demanda por assentos em vôos começava a esboçar sinais de reaquecimento. Era 2004 e, nesse espaço de oportunidade, cresceu a GOL e surgiram novas bandeiras mirins.

O Estado interferente a tudo assistiu como se nada fosse com ele, embora o comando legal estabelecesse claramente (artigo 188 do Código) a intervenção da autoridade para sanear um serviço mal prestado ou liquidá-lo. A malha aérea, ou seja, a adequada oferta de assentos em vôos, dependia, sobretudo, de um ataque frontal aos problemas da Varig, por ser a maior supridora do mercado. Mas a autoridade, apesar de seguidamente instada a agir, permaneceu inerte, como se apenas ao "mercado" coubesse disciplinar um setor totalmente regulamentado.

Com o pedido de recuperação judicial da Varig, em meados de 2005, coincidindo com o advento da nova Lei de Falências, o suposto eixo propulsor de uma solução deslocou-se para o Judiciário, visivelmente desequipado para essa missão saneadora. Tal incapacidade se confirmou em seguida quando, premida entre as pressões de credores e de interesses ocultos poderosos, a Varig embicou para o colapso total já em abril de 2006, não sem antes merecer a mal-humorada negativa do presidente: "O governo não vai ajudar empresa falida".

Não se tratava de apoio nem ajuda a empresa nenhuma, nem a seus credores, mas sim de saneamento urgente de um serviço público regulado, com responsabilidade legal do Estado. Nada feito. A partir de maio, com a debacle da Varig, a oferta de assentos minguou subitamente pelo drástico encolhimento da malha supridora de vôos. Era a peça que faltava para propiciar o atual caos aéreo. Nos trechos para o exterior, com a rápida reposição de assentos pelas empresas estrangeiras, houve uma compensação pela saída da Varig, embora com sangria de mais de US$ 1 bilhão em divisas. Porém, nos vôos domésticos surgiram as filas crescentes nos aeroportos. Os clientes foram postos a esperar e esperar. O "causo" se agrava a partir do segundo semestre do ano passado, com o aumento forte da demanda em confronto com a descrita redução da oferta. Esta demanda ingurgitada encontrou mais dois obstáculos: a redução da oferta efetiva de pistas de pouso e decolagem, pela concentração das operações domésticas em Congonhas, de onde operam predominantemente TAM e GOL, e pela "operação padrão" dos controladores de vôo, após o trágico acidente nos céus da Amazônia. Portanto, o oportunismo reivindicativo dos controladores encontrou terreno fértil, plantado por uma malha mal operada pelas "substitutas" da agonizante Varig, sem aeronaves de reposição e sem qualquer margem de manobra para enfrentar, por exemplo, uma operação padrão dos controladores.

Na frente interna, a desorganização causada pela destruição consentida da Varig, em conjunção ao aval das autoridades à congestão das operações comerciais em aeroportos paulistanos, somada à total inépcia de Brasília no episódio dos controladores de vôo, desemboca finalmente no endosso à nova concentração do mercado em mãos de duas companhias, em níveis ainda maiores que os praticados na era Varig-Vasp-Transbrasil. O apagão não pode ser decifrado senão pela inserção, neste, do "causo" Varig, que ora se desdobra no lance da GOL.

O caos aéreo tem nome e sobrenome, origem e seqüência de fatos, todos reportados ao Judiciário, ao Ministério Público e ao Congresso Nacional, de cujas xícaras emborcadas, até hoje, não partiu qualquer providência que constranja o Executivo Federal a, de fato, assumir sua responsabilidade como verdadeiro protagonista da crise. O apagão aéreo é, antes de qualquer outra coisa, evidência do colapso de autoridade e do cumprimento das leis do país. Ou seriam os primeiros passos orquestrados até a neo-anarquia?

Paulo Rabello de Castro é economista e consultor. Orientou o TGV -Trabalhadores do Grupo VARIG. Preside a SR Rating, agência de avaliação de riscos, e coordena o Conselho de Planejamento Estratégico de FECOMERCIO -SP. Email: paulo@rcconsultores.com.br