Título: Globalização assimétrica
Autor: Haddad, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 21/02/2007, Opinião, p. A8

Desde a abertura da economia brasileira, no início dos anos 1990, o processo de globalização tem impactado diferentemente os setores produtivos e as economias regionais e urbanas do país. Para as grandes empresas que já estavam profundamente inseridas na economia global, os impactos foram de natureza marginal. Através de ajustes incrementais em suas cadeias produtivas, conseguiram se adaptar ao novo ambiente macroeconômico de integração competitiva. Na verdade, estas empresas pertenciam a setores (celulose, mineração, agronegócios, alumínio, aço etc) que, na Segunda Divisão Internacional do Trabalho dos anos 1970, se consolidaram em países emergentes que se qualificassem com grande disponibilidade de fatores básicos (recursos naturais renováveis e não renováveis, energia, mão-de-obra abundante, fatores climáticos etc) e que foram igualmente complacentes, à época, com elevados índices de poluição ambiental gerada por estas atividades.

Muitas das empresas destes setores estavam sob o controle do governo, e, após a privatização, obtiveram maior flexibilidade organizacional e capacidade competitiva. Basta ver os ganhos de eficiência microeconômica da CVRD e de empresas do setor siderúrgico, por exemplo, que, até então, se encontravam restringidas no seu desempenho econômico e financeiro pela crise fiscal do seu principal controlador, pela politização de seu processo decisório e pelas ambigüidades de sua missão institucional. Os indicadores econômicos e financeiros altamente favoráveis destas empresas são uma demonstração de que, quando destravadas das amarras da burocracia estatal, constituem um fator decisivo para o processo de competitividade global do país.

Por outro lado, as cadeias produtivas que tinham, em sua composição, uma empresa-âncora de maior escala, capaz de estruturar os interesses empresariais à jusante e à montante, conseguiram tornar-se competitivas globalmente em um período de tempo não muito longo e ampliaram as suas possibilidades de exportação. A empresa-âncora, neste tipo de situação, atuava como uma espécie de agência coordenadora das indispensáveis transformações produtivas e organizacionais em termos de tecnologia, marketing, engenharia financeira etc. Na indústria automobilística e na indústria alimentícia, como ilustração, vislumbra-se esta ação coordenadora que viabilizou a competitividade sistêmica de um amplo conjunto de micro e pequenas empresas (MPEs) nas suas cadeias produtivas.

Entretanto, um número imenso de micro e pequenos empreendimentos, dispersos ou agrupados em diversos municípios e regiões do país, tiveram de enfrentar uma concorrência externa muito agressiva tendo, de um lado, todas as dificuldades típicas do Custo-Brasil (pesada carga tributária e previdenciária, custos financeiros e administrativos muito elevados, má qualidade da infra-estrutura econômica etc); e, do outro lado, competidores oriundos de economias estáveis com seus baixos custos financeiros, seus elevados padrões tecnológicos e suas modernas técnicas de gestão.

Para todas as MPEs brasileiras, está valendo o esforço horizontal que vem sendo feito para modificar sua legislação tributária e para simplificar sua vida burocrática e administrativa, como foi o caso da recente aprovação do Simples ampliado. Por outro lado, desde o início deste século, está em curso no país uma experiência focalizada de organizar os agrupamentos produtivos de MPEs, espacialmente concentrados e especializados em negócios tradicionais (móveis, confecções, couro e sapatos, laticínios, granitos e cerâmica etc) e não-tradicionais (cultura, tecnologia de informação, turismo sustentável etc) sob a forma de arranjos produtivos locais (APLs).

-------------------------------------------------------------------------------- Muitas empresas que estavam sob o controle do governo obtiveram maior capacidade competitiva, após a privatização --------------------------------------------------------------------------------

Um arranjo produtivo local se define como uma concentração microespacial de empresas que trabalham, direta e indiretamente, para o mesmo mercado final, que compartilham de valores e conhecimentos tão importantes que definem um ambiente cultural, e que são especificamente interligadas num mix de cooperação e de competição. A principal fonte de competitividade são os elementos de confiança, de solidariedade e de cooperação entre empresas, assim como a existência de uma estrutura de apoio institucional, compreendendo instituições do setor público e do setor privado (agentes financeiros, universidades, instituições de pesquisa, centros tecnológicos, serviços de apoio especializado etc).

Há, atualmente, em diferentes setores produtivos e regiões do país, mais de duzentas experiências (229, segundo estimativa do Sebrae) de promover e desenvolver agrupamentos localizados de MPEs, quase todas com intensa participação do Sistema Sebrae, das quais algumas já se qualificam como arranjos produtivos locais pelas suas características estruturais mais avançadas.

São experiências de parcerias público-privado que aproveitam as lições históricas dos distritos industriais da Terceira Itália; com modelos de governança de auto-gestão empresarial; que exploram os benefícios de cooperar para competir pelo uso eficiente e eficaz de instrumentos econômicos e mecanismos institucionais já disponíveis; onde se procura resolver problemas comuns a grupos de micro e pequenos produtores que isoladamente não teriam como resolvê-los (logística, inovações tecnológicas, inteligência comercial, infra-estrutura especializada etc).

Sem este esforço de conceber e implementar estratégias competitivas para os agrupamentos de MPEs, pode-se pensar, num caminho seqüencial de darwinismo econômico: amplia-se o grau de abertura econômica; há um novo choque competitivo com a liberação do comércio para gigantes da economia mundial (Estados Unidos, Canadá, União Européia, China, Japão), até mesmo em mercados de produtos tradicionais; e o mercado acaba preservando apenas os agrupamentos produtivos nacionais que apresentarem maior grau de adaptabilidade ao novo ambiente econômico. Caracteriza-se, assim, um quadro de reprodução das assimetrias e das desigualdades de oportunidades entre os diferentes segmentos produtivos do país.

Paulo Haddad é professor do Ibmec e ex-ministro do Planejamento e da Fazenda.