Título: Rodada Doha é retomada, mas ainda sem confiança em acordo
Autor: Moreira, Assis
Fonte: Valor Econômico, 29/01/2007, Brasil, p. A4

Quando ministros de comércio de 27 países relançaram formalmente a Rodada Doha, no sábado pela manhã em Davos, a estação alpina suíça estava quase sob uma tempestade de neve. Era a difícil caminhar e ver o que se passava a alguns palmos à frente do nariz, mas havia um certo entusiasmo com a neve e o ar fresco.

A situação está quase parecida na rodada global de comércio. Na frente política, chefes de governo presentes em Davos, encabeçados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reafirmaram o engajamento político na negociação e mostraram impaciência por resultados. Os ministros foram instruídos a acelerar as barganhas para pavimentar o caminho para o fim da rodada.

Há um sentimento de urgência na negociação, mas há também problema de credibilidade nesse anúncio de retomada. O mais importante é ter elementos para negociar, e isso está condicionado ao calendário político dos EUA.

Desesperados para sair do papel de vilão que não deixa a negociação avançar, os EUA deram um aceno. Sua representante comercial-chefe, Susan Schwab, revelou que o presidente George W. Bush pedirá esta semana ao Congresso a prorrogação da Trade Promotion Authority (TPA), que expira em julho. Pelo mecanismo, a Casa Branca tem autorização para negociar acordos que os parlamentares depois aprovam ou rejeitam em bloco, mas não podem emendar.

O pedido de Bush vai deflagrar o período de consultas no Congresso. É quando ficará claro o que os democratas querem para votar a TPA. Enquanto isso, os países-chave na negociação global - EUA, União Européia, Brasil e Índia - vão aprofundar negociações bilaterais. Os outros vão fazer figuração em comitês técnicos da OMC, para dar a percepção de que a negociação está se movendo.

Não há garantia de que o Congresso controlado pelos democratas aceite prorrogar a TPA. Chegará um momento em que o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, terá de convocar uma reunião ministerial com pelo menos 30 ministros para bater o martelo sobre o destino da rodada. "O fim do jogo será dentro de dois a três meses, com sucesso ou fiasco da rodada", resumiu o comissário europeu de comércio, Peter Mandelson.

O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, destacou o dilema entre o que fazer primeiro: de um lado, o governo americano pede um pacote substancial de oferta por parte dos parceiros, nas áreas agrícola, industrial e de serviços, para tentar convencer o Congresso da prorrogação da TPA. Já o Brasil e outros países preferem que Washington apareça primeiro com oferta de corte substancial em seus subsídios agrícolas domésticos, para depois fazer concessões adicionais. O fato é que, em algum momento, americanos, europeus, brasileiros e indianos vão ter de fazer novas ofertas.

A estratégia das negociações bilaterais entre EUA, UE, Brasil e India é saber "onde está o bife". Ou seja, em vez de ficar discutindo teoricamente fórmulas de cortes de tarifas, negociadores discutem o tamanho de cotas para produtos agrícolas mais importantes. Com isso, esperam convencer seus setores dos ganhos de um acordo.

Mas essas bilaterais são insuficientes. As discussões continuam sendo mais conceituais, as posições se aproximam muito lentamente, com todos enraizados nos mesmos argumentos. Cada um cobra do outro um preço considerado alto demais por concessões.

Embora alguns ministros falem em tentativa de "algum compromisso" em fins de março, o mais provável é que saia algo em junho. Isso significaria ter os números que todo mundo quer saber, ou seja, o tamanho de corte de tarifas e subsídios.

Em Davos, o Brasil, líder do G-20, mostrou-se o mais ansioso para fechar um acordo a qualquer momento. "Tenho autorização do presidente, os números para concluir um acordo hoje, amanhã ou depois de amanhã, se os outros (EUA e UE) quiserem", desafiou Amorim.

Pela primeira vez, o representante brasileiro deixou aberta a possibilidade de prorrogação da "cláusula de paz". Os países ricos perderam em fins de 2003 essa cláusula, pela qual os subsídios agrícolas não podiam ser questionados. Os EUA dizem que necessitam de sua renovação para proteger subsídios que distorcem o comércio em níveis inferiores aos aceitos num futuro acordo agrícola. Fino negociador e admirado por seus colegas, Amorim comentou que tudo depende do que ganhar na Rodada Doha.

Peter Mandelson deu um passo adicional e anunciou publicamente o que dizia em privado: a UE aceita aumentar o corte médio de tarifa agrícola de 39% para algo próximo dos 54% propostos pelo G-20. A tática de Mandelson é pressionar os EUA. "Ele está nadando de braçada depois que passou o papel de vilão aos EUA", diz um negociador.

Nesta segunda-feira, Amorim, Schwab e Mandelson voltam a se encontrar em Genebra. O brasileiro reunirá também o G-20, que prepara flexibilidade para o momento de decisão.

Na quarta-feira, uma reunião de todos os países da OMC pode ser mais complicado. É provável que Lamy seja questionado por alguns países, como a Venezuela, sobre a legitimidade de decidir retomar a rodada em Davos, entre um grupo de membros.

Enquanto isso, Supachai Panitchpakdi, ex-diretor da OMC, que fracassou na tentativa de terminar a rodada, agora como observador "de fora" aposta pouco ou quase nada na conclusão da negociação neste ou no próximo ano. Supachai acha que o calendário político nos EUA e na Europa empurrará a rodada para 2009.

Consciente desse risco, o diretor atual da OMC, Pascal Lamy, não cessa de alertar para as conseqüências "dramáticas" do fiasco total de Doha. "O presidente Lula tem razão quando diz que o impacto vai além do comércio, tem a ver com combate a pobreza", repetia Lamy em Davos, enquanto a tempestade de neve diminuía, mas o terreno ficava mais escorregadio.