Título: Veterano do FMI defende diálogo com a Argentina
Autor: Robinson Borges
Fonte: Valor Econômico, 27/12/2004, Finanças, p. C8

Durante as comemorações dos 60 anos do Fundo Monetário Internacional (FMI), celebrados ao longo de 2004, um país fez questão de não participar da festa: a Argentina. Foram vários os confrontos entre a Casa Rosada e Washington, envolvendo discussões sobre o pagamento da dívida e a condução da política macroeconômica argentina. Mas, apesar do afastamento, a terra de Néstor Kirchner esteve presente nos debates promovidos pelo organismo para examinar os desafios para o futuro. A pergunta que se faz é se o FMI deve ou não renegociar com o país. Em entrevista ao Valor, Jack Boorman, que trabalha no FMI há três décadas e hoje ocupa o cargo de conselheiro especial do diretor-gerente do fundo, Rodrigo Rato, diz que se as autoridades econômicas - como as da Argentina - não podem comprometer-se em tomar as medidas necessárias, "o FMI deve estar disposto a dizer não até que suas autoridades econômicas enxerguem a necessidade de reforma e estejam dispostas a agir". A resposta do governo para o FMI tem sido consistente e não apenas retórica. Há três anos, a Argentina deu um calote de US$ 100 bilhões, o maior da história aos credores estrangeiros. Hoje, apresenta crescimento de 8% ao ano, conquistado de forma muito distante da preconizada pelo FMI. Para Boorman, no entanto, o FMI tem a responsabilidade de colaborar nas orientações às autoridades dos países e de seus credores, em especial no momento em que a reestruturação da dívida tiver de ser discutida. Isso deve ocorrer para colocar a posição da nação em relação ao exterior em situação equilibrada e sustentável. "Um dos parâmetros cruciais na determinação dessa sustentabilidade é a capacidade de o país produzir um superávit primário." Na última tentativa de negociação com a Argentina, o FMI, de fato, exigiu superávit fiscal maior que os atuais 3% do PIB, sinalizando a continuidade da política ortodoxa do Fundo. As orientações foram dadas mesmo depois de o próprio Fundo ter admitido, em dois documento recentes, sua responsabilidade com a crise da desvalorização do peso em 2002. Mas não foi a Argentina que esteve nos debates do Fundo. Com o olhar crítico de quem vivenciou várias fases do FMI - o período anterior à queda do Muro de Berlim, a consolidação de uma economia global e as crises nos países emergentes dos anos 90 -, Boorman avalia que um dos problemas mais sérios do organismo hoje é sua a governança, que não tem acompanhado as mudanças globais. A estrutura de cotas vigente garante que haja 24 residentes num conselho executivo de 24 cadeiras. Oito têm seus próprios assentos e os outros 176 países membros constituem grupos de países de vários tamanhos. Leia a seguir os principais trechos da entrevista. Valor: O FMI deve dizer não para um membro quando ele precisar de ajuda financeira se já teve uma conduta errada no passado? Jack Boorman: Não acho que o FMI não deveria ajudar um país que tenha se comportado mal. Essa é uma posição defendida por alguns, mas da qual discordo. Na realidade, creio que, qualquer que seja seu histórico, se um país membro compromete-se a corrigir suas políticas e a implementar medidas de reformas para corrigir os problemas econômicos e financeiros com que se defronta, então, o Fundo deve estar disposto a proporcionar ajuda financeira a tal país. Entretanto, se as autoridades econômicas de um país não podem comprometer-se em tomar as medidas necessárias, o FMI deve estar disposto a dizer não a esse país. Valor: O FMI deve continuar emprestando para a Argentina? Boorman: O Fundo terá de fazer uma avaliação sobre a sustentabilidade da posição da Argentina em relação ao exterior. Se chegar a um acordo e se as autoridades argentinas desejarem continuar a beneficiar-se do apoio financeiro do FMI, esse acordo precisará conter a promessa de permitir à Argentina ter sucesso em arcar com o remanescente de sua dívida, bem como gerenciar sua economia de modo a produzir tanto estabilidade como crescimento. O FMI fará essa avaliação quando conhecer detalhes dos termos da negociação com os credores privados e da reestruturação da dívida para com esses credores. Valor: O sr. diz que é preciso ser cuidadoso sobre como a experiência argentina deve ser interpretada depois do acordo entre o governo e seus credores privados. Por que? Boorman: Se e quando for firmado um acordo entre a Argentina e seus credores privados, ele não deve ser interpretado como confirmação de que tinham razão aqueles que afirmam que os atuais mecanismos e esquemas disponíveis para promover um acordo numa situação de crise de endividamento desse tipo são suficientes para a tarefa, apenas porque um acordo tenha sido finalmente negociado. Não deveríamos perder de vista o enorme custo para o povo e para a sociedade argentina e, com efeito, para os credores, decorrente do prolongado período durante o qual não houve acordo, e durante o qual ocorreram enormes perdas e desestruturação na economia. Valor: O sr. disse que a Argentina foi alertada para negociar suas dívidas e sua política macroeconômica e que a passividade oficial pode vir a tornar essas questões difíceis. Boorman: O FMI tem uma responsabilidade em ajudar a orientar as análises e decisões tomadas pelas autoridades de um país e por seus credores privados, quando uma reestruturação da dívida de um país é necessária para colocar a posição da nação em relação ao exterior em situação equilibrada e sustentável. Um dos parâmetros cruciais na determinação dessa sustentabilidade é a capacidade de o país produzir um superávit primário em seu orçamento. Normalmente, o Fundo realiza essa avaliação quando um país defronta-se com uma crise de endividamento, mas o fez apenas nos termos mais gerais, no caso da Argentina, deixando para as autoridades e os credores a definição dos detalhes macroeconômicos específicos. Valor: Na celebração dos 60 anos do FMI o sr. se deparou com o que chama de desafios para o futuro da organização. Quais são eles? Boorman: Encontrar maneiras de fortalecer ainda mais sua supervisão sobre as políticas econômico-financeiras de seus países membros, tanto os países mais industrializados como os países de mercados emergentes, para identificar os riscos e vulnerabilidades com que se defrontam esses países e para ajudar a formular as políticas necessárias para enfrentá-las. Nesse sentido, é essencial que o Fundo, tendo identificado as vulnerabilidades e as necessidades de correções de políticas, possa trabalhar efetivamente para convencer as autoridades econômicas a tomarem as necessárias ações corretivas em tempo hábil. Valor: Quais são os efeitos colaterais da estrutura de cotas do conselho do FMI e qual seria a melhor solução para este problema? Boorman: As fórmulas segundo as quais são calculadas as cotas dos países membros precisam novamente ser revistas, e a maneira pela qual as cotas são efetivamente definidas, usando os resultados da aplicação dessas fórmulas, necessita ser reavaliada. É necessário encontrar maneiras de assegurar que as cotas reflitam fielmente a posição de cada país na economia mundial, pois o status relativo de cada país evolui e se modifica com o passar do tempo. Esse não é um exercício aritmético simples. Envolve difíceis considerações sobre como ponderar diversos aspectos do envolvimento de um país no sistema econômico e financeiro mundial e, em última instância, envolve também um certo componente político.