Título: Heterodoxos vêem governo refém do rentismo
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 11/06/2007, Brasil, p. A4

O governo Lula adotou o crescimento como bandeira do segundo mandato, mas os economistas heterodoxos reunidos na Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) não têm ilusões: para eles, a política econômica segue fiel aos preceitos neoliberais, por manter a combinação de juros estratosféricos, câmbio valorizado, superávits primários elevados e abertura comercial e financeira. A avaliação predominante é de que os interesses rentistas - que seriam formados não apenas pelo sistema financeiro, mas também por empresas do setor produtivo - continuarão a dar as cartas nos próximos anos. A possibilidade de implementar um projeto desenvolvimentista lhes parece distante, especialmente porque grande parte da elite não é nacionalista.

Para a professora Leda Paulani, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), o Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC) não significa o abandono pelo governo Lula do neoliberalismo. Haverá alguns bilhões de reais a mais investidos em infra-estrutura, mas o coração da política econômica seguirá intacto. Ela tampouco acredita que a escolha de nomes menos alinhados com o pensamento ortodoxo - como Luciano Coutinho para a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) - representa alguma mudança de rumo no segundo mandato. "Do ponto de vista macroeconômico, continua a combinação de juros altos e câmbio sobrevalorizado, enquanto as reformas continuam a ser pensadas no sentido microeconômico, para melhorar o ambiente de negócios e para criar as condições para a valorização da riqueza privada. Isso é típico do neoliberalismo", resume Leda, presidente da SEP, instituição que realizou na semana passada, na FEA-USP, o XII Encontro de Economia Política, reunindo várias correntes do pensamento econômico de esquerda.

Para os economistas heterodoxos, a força do capital financeiro é fundamental para entender a dificuldade da implementação de um projeto desenvolvimentista. O professor Luiz Filgueiras, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que há hoje uma junção do capital financeiro com o capital produtivo. Filgueiras lembra o caso do grupo Votorantim, que tem um banco muito rentável.

"As empresas produtivas têm hoje na função financeira uma de suas funções mais importantes", diz o professor José Carlos de Souza Braga, da Unicamp. "A meu juízo, talvez possamos dizer que capitalismo financeiro é sinônimo de capitalismo contemporâneo."

Segundo Filgueiras, os segmentos do agronegócio, de commodities industriais e uma série de grupos financeiros "estão muito satisfeitos" com o modelo que vigora no país. Por conta disso, o ex-presidente do BNDES Carlos Lessa afirma que não se pode confiar na elite brasileira para um projeto de desenvolvimento do país. "O país não cresce há 25 anos e eles estão cada vez mais felizes", resume ele, para quem a elite "sempre foi patrimonialista e nunca privilegiou a produção." O resultado é que o empresário brasileiro "tem enorme inveja do rentista bem-sucedido".

Quando pode, esse personagem vende sua companhia, para não ficar sujeito às oscilações da produção, avalia Lessa. "Nada melhor para um brasileiro do que vender a empresa, circular por um paraíso fiscal o resultado da venda e comprar títulos da dívida pública como investidor estrangeiro."

O professor Carlos Eduardo Carvalho, da PUC-São Paulo, diz que as elites brasileiras, à diferença das asiáticas, não são nacionalistas, o que complica a implementação de um projeto voltado para o desenvolvimento. "A nossa elite não gosta do povo e tem profunda vergonha de ser brasileira." Carvalho diz que os "antigos atores sociais identificados com o desenvolvimentismo em grande parte desapareceram de cena". "Não há mais movimento sindical no Brasil enquanto ator político. Grande parte da elite sindical foi cooptada pelo poder a um custo baixíssimo", diz. "Estão todos ocupando cargos no Estado ou traficando influência no Estado, o que é quase a mesma coisa."

Se avalia a elite com desconfiança, Lessa é mais otimista em relação ao povo, "um protagonista potencial do desenvolvimento, não como objeto, mas como sujeito". Lessa vê com entusiasmo a possibilidade de pequenas e médias empresas se organizarem em arranjos produtivos locais (APLs), podendo ganhar, em alguns casos, dimensões e eficiência das grandes. Para o país, uma vantagem é que os APLs não serão desnacionalizados.

O professor Reinaldo Gonçalves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é bem mais pessimista. Para ele, o país passa por um processo de "africanização". "De 1980 para cá, o Brasil está numa trajetória de instabilidade e crise que afeta não apenas o tecido social. A crise é econômica, social, institucional e moral", afirma ele, para quem a "africanização" atinge não só as elites, mas também o povo. "Com a sua estratégia de sobrevivência, o próprio povo se degrada. O melhor exemplo são essas matanças na periferia", diz Gonçalves. "Para se proteger, o povo passa a ter práticas oportunistas. O povo tem a elite que merece, e a elite tem o povo que merece."

Na macroeconomia, a sobrevalorização do câmbio preocupa fortemente os heterodoxos. Leda diz que há o risco de desindustrialização prematura do país, apontando o risco de reprimarização da pauta de exportações, que poderia voltar a se concentrar perigosamente em commodities. O professor João Sicsú, da UFRJ, também alerta para esse problema, dizendo que ele é propício à concentração de renda. "Esse é um modelo de ricos e pobres, em que se exclui a classe média. É fundamental combater a reprimarização da pauta." Para Sicsú, o modelo a ser seguido é o asiático, com juros baixos, câmbio desvalorizado e gastos do governo em infra-estrutura, educação e inovação tecnológica.

Paulo Gala, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, também se preocupa com os males da valorização do câmbio. Ele notaque ele desestimula a migração dos trabalhadores de setores menos produtivos para os mais produtivos e incentiva indústrias como as "maquilas" mexicanas, que importam grande parte dos componentes e agregam pouquíssimo valor local a seus produtos.

Para Leda, mudar esse quadro passa primordialmente por recuperar "graus de liberdade para fazer política econômica". Ela defende controle de capitais e reduções significativas dos juros, o que melhoraria a situação do câmbio. Os juros mais baixos também abririam espaço para reduções dos superávits primários (a economia do governo para pagar juros). Com um crescimento maior da economia e um custo financeiro mais baixo, a relação entre a dívida e o Produto Interno Bruto (PIB) cairia naturalmente. Ela considera importante a adoção de uma política comercial mais protecionista, lembrando que os países desenvolvidos procedem desse modo.

E há possibilidade de essas propostas serem adotadas nos próximos anos? "Acho que o máximo que eles vão fazer é reduzir um pouco mais taxa nominal de juros, o que não quer dizer que a taxa real vá cair, porque a inflação também tem se reduzido. Há também o PAC, que deve injetar mais recursos em infra-estrutura, mas não é uma mudança de política econômica", diz Leda, para quem o governo é refém do capital financeiro. "Os interesses rentistas são muito poderosos".