Título: Fazenda e Planejamento
Autor: Haddad, Paulo R.
Fonte: Valor Econômico, 04/12/2006, Opinião, p. A12

Quando do início do Plano Real, sob a necessidade de haver um comando único no combate à superinflação do início dos anos 1990, estabeleceu-se uma relação espúria entre os campos de atuação do Ministério da Fazenda e do Ministério do Planejamento. As políticas econômicas, tanto as de curto prazo quanto as de longo prazo, passaram a ser coordenadas integralmente pelo Ministério da Fazenda, e o Ministério do Planejamento se transformou num centro de controle orçamentário da União, de estudos e de pesquisas aplicadas.

Usualmente, há uma adequada divisão de trabalho entre os dois ministérios. O Ministério da Fazenda cuida da política econômica de curto prazo, ou seja, dos problemas de estabilização e da consistência macroeconômica. E o Ministério do Planejamento lida com as questões de médio e de longo prazo, ou seja, do processo de desenvolvimento sustentável do país. Além do mais, há experiências consolidadas, aos três níveis de governo, de como equacionar, organizacionalmente, os conflitos inevitáveis entre estas esferas de governo na coordenação das políticas públicas.

Entretanto, quando as funções se confundem em termos de concentração do poder decisório no Ministério da Fazenda, cabe a este a palavra final também sobre a dinâmica e a estrutura dos gastos públicos, assim como sobre a existência e o conteúdo das políticas setoriais.

Mais recentemente, esta disfunção organizacional tem trazido conseqüências onerosas para a dinâmica econômica do Brasil, à medida que já vem se arrastando por mais de uma década. Assim, vai se perdendo a visão estratégica da evolução da economia. Os escassos recursos públicos são alocados numa perspectiva dominante dos problemas de curto prazo. E o Ministério da Fazenda, ao priorizar a gestão da dívida pública e a geração dos superávits fiscais, espalha as incertezas no processo decisório da máquina administrativa federal, pelas práticas do contingenciamento e da repressão fiscal.

De fato, têm-se elaborado diversas versões do plano plurianual de ação e de investimentos, mas este acaba funcionando, muitas vezes, como um recorrente e poderoso argumento para postergar as expectativas dos projetos setoriais da administração e para reduzir as tensões internas na disputa pelos recursos escassos. E, no final, o Ministério da Fazenda, no dia-a-dia da administração, acaba se assemelhando, cada vez mais, a um gabinete de primeiro-ministro, ainda que num regime presidencialista de governo.

Se esta concentração da poder decisório teve um papel funcional, positivo e circunstancial, para viabilizar a implantação do Plano Real, provocou também um modo de gestão dos interesses maiores da nação que induziu a configuração de graves questões para se promover uma articulação positiva entre a estabilidade econômica e o desenvolvimento sustentável do Brasil.

-------------------------------------------------------------------------------- Elaboram-se várias versões do plano plurianual de ação, que no fim funcionam como argumentos para postergar futuros projetos setoriais --------------------------------------------------------------------------------

Em primeiro lugar, as novas teorias do crescimento econômico endógeno colocam em questão a dicotomia analítica entre políticas de curto prazo e políticas de longo prazo. De um lado, as teorias que buscam analisar as flutuações ou os ciclos reais dos negócios mostram que estes podem ter uma influência poderosa no longo prazo. Por outro lado, as condições iniciais de uma economia, afetadas por desequilíbrios, podem influenciar o seu ritmo do crescimento. E a maior ou menor rapidez do crescimento e o seu próprio estilo podem impactar também as evoluções conjunturais.

Em segundo lugar, como a economia brasileira tornou-se mais complexa e interdependente do ponto de vista estrutural, coloca-se, a cada momento, a questão da transversalidade no processo de formulação e de implementação das políticas públicas. Problemas de desenvolvimento sustentável da matriz energética, da preservação dos ecossistemas e da logística de transporte, entre outros, exigem a coordenação do posicionamento simultâneo de muitos órgãos da administração direta e indireta dos três níveis de governo. A dimensão mais visível desta falta de coordenação, na atual administração, é a quantidade de projetos de infra-estrutura econômica paralisados por falta de quem, dentro da máquina administrativa, negocie soluções para os dilemas típicos do processo de desenvolvimento que os envolvem: eficiência econômica versus eqüidade social, expansão produtiva versus sustentabilidade ambiental, o balanceamento de perdas e de benefícios intersetoriais e interregionais etc.

Em seguida, há dúvidas também sobre a eficácia operacional do atual modelo de gestão das políticas públicas. Quanto mais discricionárias e aleatórias forem as regras de distribuição e de liberação dos recursos fiscais para os órgãos setoriais, mais eles tendem a desenvolver contra-estratégias para ampliar os seus gastos. Estas contra-estratégias têm vários nomes: o paradoxo da prioridade invertida (gasta-se primeiro nas rubricas não-prioritárias, pois para as prioritárias os recursos acabam chegando), vinculações recorrentes de receitas tributárias, uso intensivo do poder regulatório que gera despesas compulsórias etc. Não é de se estranhar, pois, que as despesas do governo venham crescendo, nos últimos anos, a um ritmo três vezes superior ao ritmo de crescimento da própria economia brasileira.

Finalmente, é missão de todo processo de planejamento prospectar o futuro da economia e gerar cenários alternativos de desenvolvimento com menores custos de oportunidade para a sociedade. Estes cenários servem para definir políticas que irão coordenar o aumento da produtividade dos recursos naturais renováveis e não-renováveis, para mobilizar potencialidades latentes (bioenergia, por exemplo), para expandir e concentrar capital humano e institucional em setores-chave, para eliminar eventuais pontos de estrangulamento na infra-estrutura econômica etc. Mas servem, principalmente, para que os agentes privados possam se comprometer com projetos de investimento de lenta maturação, pois sua racionalidade econômica se exprime no longo prazo.

E a recomposição do espaço do planejamento no Brasil deve se inspirar nos fundamentos da democracia participativa, nos modernos métodos do planejamento estratégico das empresas privadas e na preservação da estabilidade monetária e da responsabilidade fiscal.

Paulo R. Haddad é professor do Ibmec e ex-ministro do Planejamento e da Fazenda.