Título: Reforma injetaria R$ 1 bi em universidades
Autor: Ana Cláudia Landi e Robinson Borges
Fonte: Valor Econômico, 20/01/2005, Especial, p. A10

Depois de comemorar o bom desempenho econômico do ano passado, a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva entrou em 2005 apostando na área social. "Este ano será o da educação", anunciou o presidente. A primeira iniciativa foi dar fôlego e projeção ao anteprojeto de reforma universitária comandada pelo ministro da Educação, Tarso Genro. O anteprojeto propõe quatro eixos: refinanciamento, autonomia e expansão das universidades federais e qualidade e regulação das instituições públicas e privadas de ensino superior. Uma das questões mais polêmicas está na área de financiamento às universidades. O Ministério da Educação propõe um aumento, de 63% para 75%, no percentual de recursos sub-vinculados para o ensino superior dentro dos 18% que o Orçamento da União garante para o ensino público. Essa elevação, caso o projeto seja aprovado, injetaria R$ 1 bilhão nas universidades. "Com essa mudança, poderemos garantir outro ponto do projeto, a expansão. Estimamos uma ampliação em torno de 400 mil vagas nos próximos quatro anos", diz Tarso Genro. A proposta de reforma deve tramitar no Congresso Nacional a partir de março e permanecerá aberta para o debate com a sociedade até 15 de fevereiro, mas já tem sido alvo de críticas dentro do próprio partido do presidente. O senador Cristovam Buarque (PT- DF), antecessor de Genro na pasta da Educação, considera a proposta de Genro uma "insensatez" e critica a visão elitista do que é educação, aquela que privilegia o ensino superior em detrimento do básico. "Esse artigo do financiamento restringe o dinheiro que iria para o ensino básico. Isso é um absurdo. Não entendo como o governo aceitou a pressão corporativa das universidades e não acredito que o ministro tenha cedido a elas." O ministro Tarso Genro garante que o ensino fundamental não será prejudicado com a nova forma de financiamento do ensino superior, pois, paralelamente ao anteprojeto, o Ministério da Educação espera a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para a criação do Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Trabalhadores na Educação (Fundeb), que propõe maior arrecadação e financiamento para a educação básica (leia texto abaixo). "O artigo que trata desta questão é claro. Os 75% da sub-vinculação não incluem o Fundeb, que prevê um aumento de recursos para o ensino fundamental", explica Nelson Maculan, secretário superior do MEC. De acordo com o MEC, o Brasil tem apenas 2 milhões de universitários e 52 milhões de alunos do ensino básico. As universidades recebem 4% do total de alunos, mas cerca de 33% dos recursos públicos que são destinados à educação. O ideal, na opinião de Cristovam Buarque, seria não limitar os recursos, nem para o ensino superior nem para o ensino básico. Mas, caso necessário, estabelecer um rateio. "Seria melhor ter 75% destinados ao ensino básico do que à elite de um país com tanta desigualdade", diz o senador, que pretende apresentar uma reforma alternativa na Comissão de Educação do Senado. Outro aspecto previsto no anteprojeto que promete esquentar a discussão é a que trata da retirada das despesas com inativos e pensionistas da área de educação do orçamento das universidades federais, transferindo-as para o Tesouro Nacional. Na opinião do economista Cláudio de Moura Castro, assessor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e um dos maiores especialistas brasileiros em educação, os artigos relacionados ao refinanciamento dificilmente serão aprovados. O mais complicado, diz ele, é justamente o que cita a transferência dos gastos com aposentados e pensionistas. "Isso corresponde a 33% do total das verbas. As universidades vão adorar ter esse recurso extra, mas o ministro Antônio Palocci (Fazenda) vai querer pagar?" Ronaldo Motta, secretário-executivo do Conselho Nacional da Educação, responde que esse item tem a anuência do ministro da Fazenda. "Há algum tempo as despesas com aposentadorias e pensionistas já não estão incluídas no orçamento das universidades federais. Só estamos querendo que permaneça assim, mas que a situação seja regulamentada", afirma. O anteprojeto prevê ainda que as universidades recebam dotações globais de recursos e tenham autonomia para decidir os destinos dos valores relativos a custeio, investimentos e pessoal. Mas sua expansão deve estar condicionada à apresentação de um plano de desenvolvimento institucional (PDI). Trata-se de uma exigência feita às instituições privadas e que será estendida, agora, às públicas. As instituições de ensino terão de elaborar, a cada quatro anos, um PDI que apresente o planejamento nos prazos de seis, nove e 12 anos. "A principal qualidade do projeto no que se refere às públicas é a defesa da autonomia. Mesmo que isso emperre em várias regulamentações, só a sua discussão é um salto monumental", afirma Castro. O novo orçamento viabilizaria a contratação de 6 mil professores e as universidades passariam a ter autonomia com suas despesas. "Nos últimos anos, a universidade brasileira perdeu 50% do valor real de seu custeio, ou seja, o gasto com a manutenção", diz Tarso Genro. Segundo a Associação dos Dirigentes das Instituições Federais de Educação Superior (Andifes), os recursos para as universidades públicas foram reduzidos sistematicamente na última década. Passaram de R$ 6,69 bilhões em 1995 para R$ 5,79 bilhões em 1998 e R$ 4,96 bilhões em 2001. Se se considerar apenas o montante para o custeio das universidades, a redução foi de R$ 552 milhões em 1995 para R$ 375 milhões em 2002, em valores nominais. Na questão do acesso e permanência dos estudantes de baixa renda, mais uma polêmica. O anteprojeto criará um sistema de proteção financeira e de reserva de 50% das vagas das instituições federais para alunos de escolas públicas, com prioridade para índios e negros. "A média hoje é de 47% de vagas destinadas a essa categoria. Essa pequena flutuação para cima não deve trazer riscos", comenta Ronaldo Motta. O critério de seleção deve seguir a proporção mínima de autodeclarados negros e indígenas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "A política de cotas está apenas regulamentando o que já é realidade. Queremos estabelecer um nexo entre a escola pública e a escola superior de natureza pública. É um projeto republicano", afirma o ministro. "As políticas afirmativas já estão sendo usadas pelas universidades. Mas a forma de sua aplicação terá de respeitar a autonomia das universidades." Mais uma vez, o senador Cristovam Buarque discorda. Ele diz que é favorável às cotas, mas acha que elas devem ser mecanismos temporários e não constar de um projeto para durar décadas. "As cotas devem ser usadas até que o ensino fundamental melhore de qualidade e permita o acesso indiscriminado", diz o senador. Os elaboradores do anteprojeto identificaram também que para os alunos de baixa renda não basta entrar na universidade pública. É preciso ter condições financeiras para cursá-la. Por isso, o MEC prevê a criação de uma loteria promovida pela Caixa Econômica Federal, cujo concurso especial anual teria a renda destinada para o financiamento de programas de assistência a estudantes de baixa renda. "Os recursos serão da ordem de R$ 150 milhões, em média. Cada bolsista consumiria R$ 3 mil ao ano. Com uma única extração anual, o governo manteria 50 mil bolsistas em 12 meses", diz Motta. Atualmente, 9% dos brasileiros entre 18 e 24 anos cursam o ensino superior. O índice é bem inferior ao da Argentina (32%), dos Estados Unidos (50%) e do Canadá (62%). O Plano Nacional de Educação (2001/2010) prevê taxa de escolarização de 30% da população. "Essa meta só será factível se o Estado promover políticas que garantam o acesso de jovens de baixa renda ao ensino superior expandindo as universidades federais para regiões que necessitem de escolas superiores, criando vagas públicas nas universidades não estatais e privadas e ampliando os cursos noturnos nas universidades públicas", observa Tarso Genro. O ministro também defende que o Estado resgate seu papel regulador do sistema privado, caminhando na contramão da expansão "desenfreada" da década de 1990. Essa supervisão implicará processo de avaliação e aferição de qualidade. "O governo federal não contempla o pagamento de mensalidade pelos alunos. A universidade pública tem de ser gratuita. A classe média já paga impostos para garantir acesso à educação". A liberalização do ensino superior levou à expansão das universidades privadas, o que comprometeu, na opinião de Tarso Genro, a capacidade reguladora do poder público. A deficiência pode ser verificada nos números: 70% das vagas estão em instituições não-estatais e apenas 30% estatais. No Chile, por exemplo, cerca de 55% das vagas são para escolas superiores estatais. Neste campo, entra um outro tema polêmico para as escolas privadas. As instituições estatais e privadas devem integrar um sistema público de ensino superior. O Ministério da Educação adotou, em 2004, uma série de medidas legais para regular a expansão da educação superior privada com qualidade e direcionada ao desenvolvimento regional e interesse social. O economista Cláudio de Moura Castro é bastante crítico em relação a essas propostas. "O projeto prevê que as instituições particulares devem dar prioridade à atuação em áreas carentes. Isso, ao mesmo tempo em que o governo só quer abrir escolas públicas em regiões como o ABC paulista, que tem grande renda per capita". Para Castro, o anteprojeto prevê que a faculdade privada se instale em lugares sem demanda para escolas particulares. "Isso vai contra o direito à propriedade privada. Interfere nos negócios de um empreendedor", afirma. Castro também acredita ser um abuso as regras que prevêem a participação da esfera federal na gerência das universidades particulares. "O ensino é aberto à iniciativa privada, mas atende ao poder público. O Estado tem o dever de definir normas", argumenta Motta, secretário-executivo do conselho.