Título: As licenças poéticas de Gilberto Gil
Autor: Cardoso, Tom
Fonte: Valor Econômico, 10/08/2007, EU & Fim de Semana, p. 16

"É amarga a missão, raiz amarga", tem cantado Gilberto Gil em "Banda Larga", sua nova canção, que dá título à turnê que estréia no Rio (Circo Voador) neste fim de semana e na quinta-feira em São Paulo (Citibank Hall). É amarga a missão de qualquer ministro da Cultura administrar o minguado orçamento da pasta - equivalente a 0,5% do total de receitas da União -, acalmar a classe teatral - sempre ávida por mais recursos -, conciliar interesses da turma do cinema, apaziguar a crise na indústria fonográfica e contornar a greve dos funcionários do MinC. No fim do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Gil pensou em abandonar o barco. Chegou a anunciar à família e aos amigos que gravaria, enfim, o seu disco de sambas. Quem sambou foi ele: acabou convencido, pelo presidente e pelos próprios amigos, a ficar mais um pouco.

Gil está em férias, mas - contrariando os ensinamentos de um de seus grandes mestres, Dorival Caymmi - ainda não descansou. Trocou o terno pelo abadá e encarou uma longa turnê internacional, com shows em cidades de Portugal, Marrocos, Espanha, Suíça, França, Finlândia e Itália. Descascou os abacaxis a distância, como a greve dos servidores do MinC, iniciada em abril - depois de mais de cem dias de paralisação, conseguiu negociar, enfim, uma gratificação para os funcionários. Novo pepino: a canção "Pela Internet", de sua autoria, usada em campanha publicitária do Banco Itaú, provocou protestos de setores da classe artística e de integrantes da Comissão de Ética Pública do governo federal.

Ruy Baron / Valor Na solenidade de envio ao Congresso da nova lei do audiovisual, no a no passado: "Vejo que a necessidade de uma agência regulatória para o setor se mostra cada vez mais evidente" Para sabatinar o músico e ministro, o Valor convocou um time de dez nomes ligados à cultura: o cantor e compositor Tom Zé, o cantor e compositor Lobão, a cantora (e ex-mulher) Nana Caymmi, a cantora e compositora Rita Lee, a artista plástica e editora de livros Pink Wainer, o diretor e ator Zé Celso Martinez Corrêa, o musico e produtor Charles Gavin, o escritor Zuenir Ventura e os diretores de cinema Andrucha Waddington e José Joffily. Como bom tropicalista, acostumado ao confronto, Gil encarou o desafio:

Tom Zé:

Gilberto Gil: Olá, fio de seu Everton, que saudade também. Não fique preocupado, não. Claro que vai chegar a hora de eu deixar o ministério, mas não será antes de ter feito o possível para garantir a continuidade do trabalho que vem sendo feito. No ano que vem, devemos atingir o 1% do orçamento que temos reivindicado desde o início. O PAC social do governo Lula finalmente reconhece a Cultura como eixo estratégico das ações governamentais e vamos trabalhar em sinergia de propostas e implementações com vários ministérios, com destaque para Educação, Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente, Indústria e Comércio, Justiça, Turismo e outros, com os quais o governo pretende ampliar o programa dos Pontos de Cultura para uma cobertura de, pelo menos, 40 mil iniciativas em todo o país nos próximos três anos.

Na véspera do centenário de Mãe Canô [mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia] vamos inaugurar, em Santo Amaro da Purificação (BA), o Memorial do Samba de Roda, centro de referência para estudo, preservação e dinamização da música e dança do Recôncavo, ampliada a sua abrangência para toda a memória dos vários sambas e afins, em todo o país. Será em 14 e 15 de setembro e você já está convidado. E tantas outras ações das quais vamos tentar garantir a implementação antes de deixar a função que tanto me acrescentou como artista e cidadão e tanto me alegra ver reconhecida, na sua importância, por gente como você.

Ambos esperamos que o nosso presidente assegure as condições mínimas para que possamos cumprir a contento a nossa missão. Seu incentivo, tão carinhosamente manifestado aqui, que seja ele um estímulo para mim e para o Lula cumprirmos nossos compromissos com a Cultura.

Pink Wainer: Gil, pode um ministro de Estado ceder sua música para jingle de um banco?

Gil: Eu creio que o autor da obra e titular do direito, no caso, é o artista e não o ministro. O artista, a não ser que impedido por alguma razão de Estado, pode exercer seu direito de autor. É o que penso ter ocorrido nesse caso.

Lobão: Diante desse apagão na Cultura - greves intermináveis no ministério, o sr. viajando, fazendo shows, lançando discos, recepcionando autoridades e celebridades em seu trio elétrico no carnaval -, eu gostaria de saber se essa conduta, para o sr., representa um exemplo de ética tanto na política quanto na vida pública em geral. O sr. não teme ser um precedente sombrio para uma nação à beira do nocaute ético?

Gil: Creio que sim, que pode ser um exemplo de uma ética que não se restrinja à exigência do cumprimento de regras convencionalmente impostas, mas que se constitua por meio da eficácia de seu efetivo desempenho. As greves respondem a uma legítima defesa de interesses do servidor público e um ministério tem de entendê-las como resposta também aos seus próprios interesses por quadros mais qualificados, carreiras mais sólidas, melhor desempenho funcional da instituição. Por isso, nesta última greve, como nas anteriores, o MinC se colocou, da forma mais efetiva possível, ao lado dos servidores e do governo para que levassem as negociações a termos satisfatórios.

Estou viajando, em férias, que tenho tido nos últimos anos de ministério, em que sempre o conjunto efetivo da instituição continuou em funcionamento regular, com um ministro interino e demais condições para a manutenção da atividade normal. Além disso, as formas ágeis de comunicação e monitoração do trabalho que permitem permanente contato com o ministério e as outras áreas do governo me mantêm próximo ao dia-a-dia da instituição, mesmo a tantos quilômetros de distância.

Fazer shows e lançar discos é mister do artista e não do ministro. Nos mais de quatro anos de função pública, o exercício parcial da profissão me foi garantido, sempre monitorado pela Comissão de Ética da Alta Administração Federal, que regula as relações entre a vida pública e profissional de ministros e outros altos funcionários federais. Na história da República, há vários casos de juristas, profissionais da saúde e outros que puderam conciliar, nos termos da razoabilidade de uma ética do desempenho, as suas vidas pública e profissional. É também o meu caso.

O carnaval é um momento compartilhado pelas celebridades e autoridades, com a comunidade foliã da qual, de resto, fazem parte. Tem sido assim e parece que continuará sendo por um bom tempo. Não tive até agora - e espero não tê-los até o último dia como ministro - motivos para temer a ameaça de tornar-me um exemplo sombrio para a nação. Para além das regras estabelecidas de comportamento, que de resto existem muitas e às quais nos submetemos, nós, homens públicos, temos de ter o senso da medida, do justo meio que transita entre a igual possibilidade dos extremos. E posta no exato lugar em que a nossa consciência cidadã e a nossa responsabilidade individual nos colocam.

Não tenho me visto publicamente postado em nenhum dos extremos, o da falta ou do excesso, do que quer que seja. Não me vejo faltar a moderação nem me exceder nela. Não me vejo faltar a ousadia nem me exceder nela. Não me vejo faltar o compromisso com o senso comum de correção, mas também não me excedo nele. Faço o que me é permitido fazer e o que penso que é bom e correto fazer, ainda que deslocado do senso comum ou do senso particular de muitos.

Se a auto-regulação não é suficiente, e por isso temos leis e regras, o senso espontâneo da correção, contudo, conta muito, por vezes até mais que regras e convenções. E é a resultante da interação entre a regra e o senso espontâneo de correção, a auto-regulação, que estabelece a ética pública e a projeta para o futuro.

-------------------------------------------------------------------------------- "O que não cabe mais é a carga brutal de rejeição a uma iniciativa do governo, sob as mais diversas alegações, como foi no caso da Ancinav" --------------------------------------------------------------------------------

Rita Lee: Gil, ainda está de pé irmos juntos para a estrada com o "Refestança 2" [a roqueira e o compositor excursionam em 1977 pelo Brasil com o show "Refestança", registrado num disco ao vivo], como, aliás, já havíamos combinado antes de o Lula roubá-lo de mim?

Gil: Depende do Aníbal [personagem - um malando do morro - criado por Rita Lee na época de Os Mutantes]. Pode ser que ele, inspirado no Lula, de quem sei que é eleitor, queira também me arrumar um ministério no governo do Sítio do Pica-Pau Amarelo a cuja presidência eu sei que ele está pensando em concorrer (segundo as últimas pesquisas, com reais chances de vitória!).

Nana Caymmi: Gil, querido, você chegou a declarar que a cultura como um todo e a música, principalmente, devem se tornar livres e compartilháveis e deveriam ser criadas novas maneiras de remunerar os artistas. Mas como fica meu pai, Dorival Caymmi, que, aos 93 anos, vive exclusivamente de direitos autorais?

Gil: A defesa de uma cultura livre e compartilhável não deve e não pode significar a abolição da autoralidade, da titularidade ou a inexistência da remuneração aos autores e titulares de direitos. É óbvio que Dorival Caymmi e todos os autores devem continuar a ser remunerados pelo que criaram ou venham a criar.

O que se reivindica hoje é uma maior ênfase na autogestão, em que os autores tenham restituída sua capacidade autônoma de definir o uso das suas obras; tenham liberdade para autorizar os usos justos ("fair use") para recombinações; para autorizar o aproveitamento de fragmentos de suas obras para outras criações ("samplers"); para autorizar a renúncia total ou parcial à remuneração para usos educacionais, científicos, filantrópicos e de outros gêneros, conforme seu entendimento e a compreensão da importância da formação de uma inteligência coletiva como fator insubstituível para o avanço das artes, da ciência, do conhecimento em geral.

Enfim, há toda uma cultura nova surgindo nesse campo, por força das transformações tecnológicas, econômicas e sociais que vão se impondo e nos exigem reflexões e posições também novas. Claro que se Dorival resolve deixar sua Maricotinha namorar o Internetinho e os bacurizinhos forem nascendo daí, a vida criativa só vai se rejubilar!!!

Zuenir Ventura: No ano que vem se comemora o quadragésimo aniversário de 1968, um ano memorável do qual você foi um dos principais protagonistas na cultura. Afinal, 68 terminou ou não terminou?

Gil: O lado áspero dos embates, das refregas típicas daquele época, esse lado, tenho a impressão, já se diluiu ou, pelo menos, já se distribuiu em muitas minilutas que vão levando adiante a utopia dos tais "outros mundos possíveis". A utopia em si, que talvez tenha sido a grande marca simbólica daquele ano, essa continua viva, nos alimentando através da renovada disposição, em todos e cada um de nós, de continuar acreditando na capacidade transformadora da ação inspirada no amor e na solidariedade.

Zé Celso Martinez Corrêa: Gil, você vai tombar pelo Iphan o Teatro Oficina e o seu entorno?

Gil: O Ministério da Cultura, especialmente por meio do Iphan, vem se empenhando para convencer todos os envolvidos na questão da destinação do imóvel ocupado pelo Teatro Oficina da conveniência e importância de garantir a permanência da companhia teatral naquele local. Pelos méritos do grupo, pela importância da atividade para a qualificação urbanística/cultural da área e muitas outras razões. De todo modo, estão em jogo, também, os interesses proprietários com os quais se faz necessário argumentar e tentar convencer da prioridade cultural que o uso histórico do local já estabeleceu. Esse trabalho continua em processo e nós, sinceramente, esperamos que uma solução satisfatória seja encontrada. Se concluirmos pela conveniência, eficácia e exeqüibilidade do tombamento, o faremos.

Charles Gavin: Gostaria de saber a opinião sobre o futuro da Ordem dos Músicos do Brasil, depois da saída do presidente Wilson Sândoli, que ficou mais de 40 anos no cargo.

Gil: Não está claro para muitos de nós, para mim seguramente, a necessidade de termos uma Ordem dos Músicos. Fica-me a impressão de que outros institutos e mecanismos de regulação, mais diretamente associados ao mundo real da atividade profissional dos músicos, nos moldes de uma agência, por exemplo, seriam mais interessantes. Nos últimos tempos tivemos várias manifestações contrárias seja a ações pontuais da Ordem, seja à sua existência. Penso que deveríamos nos mobilizar mais efetivamente para uma tomada de posição que pudesse instruir e induzir o Executivo e o Legislativo a se definirem por uma modernização efetiva da Ordem ou por sua extinção, substituída por uma instituição mais adequada às necessidades do setor.

José Joffily: A Ancinav não vai ter mais vez? Foi precipitada a tentativa de estender a regulamentação das concessionárias à uma agência? Se a agência não regular as concessionárias desse serviço, quem vai conseguir fazer isso?

Gil: Vejo que a necessidade de uma agência regulatória para o setor do audiovisual se mostra cada vez mais evidente. Não preciso repetir aqui todo o intricado das questões da convergência tecnológica, industrial-empresarial, etc., que vem sendo debatido ultimamente. Acho mesmo que esse debate deve ser ampliado e intensificado. Setores resistentes, em especial na radiodifusão, insistem na tese da auto-regulamenteção como instrumento suficiente. O que vemos é que a chegada do ciberespaço, da difusão eletrônica (webcast, podcast, cellcast, etc.), de outras variantes digitais e tantas novidades e interesses implicados tornam o setor tão complexo que não vejo como lidar com isso apenas com a auto-regulação.

Evidentemente, o conjunto dos agentes envolvidos tem de se manifestar em relação à conveniência de trabalhar a proposta de uma agência ou algo do gênero. Para que uma nova iniciativa unilateral do governo não venha a esbarrar nos impasses em que a primeira iniciativa esbarrou. Eu penso que a bola agora está com o setor, que deve manifestar seu entendimento atual da questão e, se isso convergir para um acionamento do Executivo e do Congresso rumo a um novo encaminhamento, que assim seja. O que não cabe mais é a carga brutal de rejeição a uma iniciativa do governo, sob as mais diversas alegações de impropriedade e ilegitimidade, como foi no caso da Ancinav.

Andrucha Waddington: Quais são os beneficios que a IPTV e a banda larga trarão ao espectador como "o meio de difusão do futuro"? Qual é o impacto dessas novas plataformas na produção independente brasileira?

Gil: Com a chegada dessas novas ferramentas de produção, mais ágeis, mais abertas, mais democráticas, mais aptas a contemplar maior variedade de talentos e propostas, o que se chama de produção independente, justamente os setores menos concentrados em poder econômico e industrial, passam a ter mais espaço com seus pequenos modelos operacionais e sua variedade estética. Muito mais gente podendo fazer muito mais coisas.