Título: Redescoberta e redenção do sul do Sul
Autor: Paulo Totti
Fonte: Valor Econômico, 10/09/2007, Especial, p. A14

Caco Argemi/Valor O prefeito de Rio Grande, Janir Branco (ao fundo as estruturas que vão rechear o casco da P-53) espera investimentos de US$ 2,4 bilhões até 2012 O futuro vai chegar e atracar no extremo sul do Rio Grande do Sul, entre hoje e quarta-feira. Um colosso de aço, com 346 metros de comprimento, 57 metros de largura e 29 metros de altura, irromperá lentamente do horizonte por entre os molhes de pedra que avançam 4 mil metros mar a dentro, e depois de demorada e delicada manobra, encostará no cais do Porto Novo da cidade de Rio Grande, a 340 quilômetros de Porto Alegre. É o casco do velho petroleiro "Sette Bello" que, comprado pela Petrobras, saiu em julho de Cingapura e, navegando a 12,5 quilômetros por hora (sete nós), praticamente oco e sem motor, mas auxiliado por seis rebocadores oceânicos, será transformado, em Rio Grande, na primeira plataforma de extração de petróleo montada no Brasil, abaixo do tradicional eixo Rio de Janeiro-Niterói-Angra dos Reis.

A chegada estava prevista para ontem à tarde, mas foi adiada porque um nevoeiro impedia a entrada do petroleiro na barra.

"Consolida-se, finalmente, o pólo naval do Rio Grande do Sul", comemora o prefeito de Rio Grande (32 anos), Janir Branco (PMDB), que estará no cais à espera do "Sette Bello", na companhia da governadora Yeda Crusius (PSDB) e prefeitos (diversos partidos) de 22 municípios da região menos desenvolvida do Estado. Está convidada a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), gaúcha por adoção e impulsionadora da promessa do presidente Lula de revitalizar a indústria naval brasileira.

Em 2008, o "Sette Bello" se chamará P-53, terá 140 metros de altura e vai incorporar-se às demais plataformas da Petrobras na Bacia de Campos (Marlim Leste), com capacidade de acomodar 240 pessoas e extrair 180 mil barris/dia, perto de 8% da produção nacional. Os cabos de energia que ligam Rio Grande à cidade de São José do Norte, do outro lado da Lagoa dos Patos, terão de ser retirados e substituídos por uma rede subaquática, pois seriam atingidos pela plataforma quando esse "Maracanã flutuante" (o estádio tem um diâmetro de 320 metros) passar novamente pelos molhes, de volta ao mar.

Há 50 anos, o Rio Grande do Sul meridional não progride, perdeu influência na pecuária, na agricultura, na política. E nunca teve indústria destacável, depois das charqueadas do século 19 e dos frigoríficos da primeira metade do século 20. Seu último presidente da República foi o general Emílio Garrastazu Médici, de Bagé, indicado por razões da ditadura e não da geografia, e a região elege no máximo vice-governadores, como Edmar Fetter, nos anos 70, tio de Adolfo Fetter Jr. (PP), hoje prefeito de Pelotas.

"O Brasil tem uma dívida com esta parte do Rio Grande", diz Adolfo Fetter, 52 anos, formado em agronomia e administração de empresas, com doutorado de ciência política em Paris e estudioso da economia do sul do Estado. "Na crise financeira mundial de 1930, quebrou o Banco Pelotense, que era o terceiro banco brasileiro em depósitos. Fortunas viraram fumaça em toda esta região. O presidente Getúlio Vargas, gaúcho, não quis socorrê-lo e com os ativos restantes e as 56 agências do Pelotense espalhadas pelo país, criou o Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Getúlio também impediu que se instalassem indústrias dinâmicas a 150 quilômetros da fronteira (Pelotas está a 135 quilômetros de Rio Branco, no Uruguai). Passamos a viver de costas para Uruguai e Argentina e de frente para o Brasil, que estava longe. O Mercosul é, na prática, uma integração comercial entre São Paulo e Buenos Aires. Mas, na fronteira, concorremos com os mesmos produtos uruguaios".

Com variação de detalhes, o diagnóstico que Fetter faz de Pelotas - em 1832, esta aristocrática cidade de 4 mil habitantes, que importava artesãos, artistas e mordomos da França, inaugurou o Teatro Sete de Abril, o mais antigo do Brasil, com platéia de 650 lugares - vale para toda a metade sul do Rio Grande do Sul, uma faixa de terras arenosas ou de antigas pastagens, hoje cansadas ou destruídas pela bossoroca, que, ao sul de Porto Alegre e Santa Maria, sai do oceano e da Lagoa dos Patos, passa por Bagé e Livramento e vai até Uruguaiana, na fronteira com a Argentina.

Mas o progresso que chega esta semana com a P-53 não vem sozinho. De repente tudo está acontecendo em torno do porto de Rio Grande, que, como reflexo do comportamento instável da economia agrícola gaúcha, há décadas procura espaço entre os maiores portos brasileiros.

No Porto Novo, o consórcio Quip, uma associação da construtora carioca Queiroz Galvão com a Ultratech e a Jurong, de Cingapura, monta as 12 estruturas modulares que vão rechear a P-53 e se prepara para a concorrência pela P-55. Nas proximidades, a construtora paulista WTorre vai começar também este ano as obras de um dique seco, que o orgulho recuperado dos rio-grandinos considera o "segundo maior do mundo" (investimento de R$ 480 milhões, estrutura de 140 metros, largura de 130m, altura livre de 16,5m e calado de 13,8m). Num contrato de dez anos, a Petrobras utilizará o dique para reparos e manutenção de plataformas e petroleiros.

O complexo portuário de Rio Grande tem três divisões. Na extremidade oeste, ainda na Lagoa dos Patos, está o Porto Velho, que data da fundação da cidade em 1737. A 90 graus, está o chamado Porto Novo, de 1915, hoje totalmente modernizado, com um terminal automotivo que serve às exportações dos carros produzidos pela General Motors em Gravataí, próximo a Porto Alegre (dólar baixo e mercado interno aquecido têm reduzido as exportações este ano) e junto a ele estão a Quip e o dique seco da WTorre. Mais adiante, em direção ao mar, surgiu o Superporto, privatizado na década de 90, explorado por empresas como Tecon (terminal de contêineres), Termasa (oito armazéns graneleiros), Tergrasa (soja e trigo), Bunge Alimentos (grãos, farelos e óleos vegetais), Bianchini (quatro armazéns graneleiros), Copesul (petroquímicos), Petrobras (derivados de petróleo e ácidos para fabricação de adubos, combustíveis para navios), e Trevo (matérias primas para fertilizantes e produtos químicos).

O retroporto é considerado o maior do país (1,6 mil hectares), rivalizando com o de Sepetiba, no Rio de Janeiro. No de Rio Grande, há a vantagem de já estar bastante ocupado, com informatizados terminais para armazenagem, manuseio, limpeza de contêineres, consolidação e estufagem de cargas e empilhadeiras com capacidade para até 45 toneladas. O Porto Velho tem calado de 15 pés (4,5 metros), o Porto Novo, de 30 pés (9 m), e o Superporto, de 40 pés (12 m).

Orgulhoso, o contador aposentado Flávio Monteiro, que trabalhou 40 anos em uma empresa de navegação, repetiu para o Valor o que diz ter ouvido uma vez de um "especialista americano": "O maior porto do mundo será o de Rio Grande. Sabem por que? Porque tem espaço".

"E agora teremos um quarto porto, o de São José do Norte. Os astros nos protegem", disse também ao Valor, em Porto Alegre, a governadora Yeda Crusius. Ela se referia às obras que, já em outubro, serão iniciadas do outro lado da Lagoa dos Patos, em São José do Norte, para a instalação de um porto de exportação da celulose produzida pela Aracruz, em sua fábrica de Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre.

-------------------------------------------------------------------------------- Entre as causas do "boom", plataformas de petróleo, dique seco, hidrovia e porto para exportação de celulose --------------------------------------------------------------------------------

São José do Norte, de 25 mil habitantes, ligada a Rio Grande por lanchas que cruzam a Lagoa dos Patos a cada 25 minutos e um serviço de barcaças para transporte de carros, caminhões e mercadorias a cada hora, já foi considerada a "capital mundial da cebola" - está registrado no hino oficial da cidade "Há uns trinta anos, o agricultor vendia uma tonelada de cebola e podia voltar da cidade com um caminhãozinho Mercedes Benz", dizem alguns de seus mais antigos moradores, à espera da lancha "Cearense" (153 passageiros, três tripulantes), protegidos do frio e da chuva num mal construído atracadouro. E acrescentam: "Hoje a cebola não vale nada. Se planta cebola até em Brasília".

O prefeito de São José do Norte, José Vicente Ferrari (PSDB), 64 anos, economista com doutorado em planificação urbana na Universidade de Paris, e passagem pelo ministério da Agricultura e antiga Superintendência da Pesca (Sudepe), em Brasília, considera os investimentos em plataformas de petróleo e no dique seco de Rio Grande, e principalmente no porto de São José do Norte, com calado natural de 50 pés (15 metros), a redenção, não só de sua cidade, "mas de todo o sul do Estado".

" O que a Aracruz pretende fazer altera o conceito do transporte de cargas no Rio Grande do Sul. A celulose sairá daqui para os terminais que a empresa tem na China e na Malásia e de lá será distribuída para a Coréia do Sul, o Japão, a Austrália e a Indonésia. Modestamente, São José do Norte ingressa na globalização".

A Aracruz, realmente, vai introduzir o modal hidroviário no sistema de transporte gaúcho. Pelo rio Jacuí, a partir de Cachoeira do Sul, passando por Rio Pardo, e chegando a sua planta industrial de Guaíba, virá a matéria prima (eucalipto) plantada na região. Em Guaíba, com a duplicação da fábrica, será produzida a celulose que seguirá em barcaças de quatro mil toneladas pela Lagoa dos Patos até o porto de São José do Norte e dali para a exportação. Em todo o projeto serão investidos em torno de US$ 1,8 bilhões, de agora até 2012. Do governo do Estado, em crise crônica de falta de dinheiro para sequer pagar o funcionalismo em dia (55% da folha é gasto com aposentadorias), a Aracruz só quer a dragagem de correção da Lagoa dos Patos, a manutenção da dragagem e a sinalização. O tráfego de barcaças pela Lagoa será ininterrupto nas 24 horas do dia. Todo o complexo empregará 12 mil pessoas.

Funcionários da Aracruz já estão em São José do Norte, selecionando e qualificando mão-de-obra. Precisarão imediatamente de 150 pedreiros e 150 carpinteiros, 200 armadores de ferragens, 80 operadores de empilhadeira e outros 80 de ponte rolante. O teste é feito ao vivo, em futuras escolas ou na reforma de prédios históricos pertencentes ao município (a própria prefeitura, entre eles). Se a equipe for reprovada, a construção é desfeita e a próxima turma vai recomeçá-la.

Paulo Nozari, da Florestal Pinus Sul, exportadora de madeira serrada de pinus elliottii (US$ 150 o metro cúbico) para Espanha e Estados Unidos (e também de cavaco e serragem), para a confecção de cercas e de "pallets" - um trançado de madeira fina que dará suporte a embalagens como as de cerâmica - depõe a favor da mão-de-obra da região. " 'O que você já fez na vida?', eu perguntava a quem vinha pedir serviço. 'Plantei cebola'. 'Que mais?' 'Cortei cebola'. 'Que mais?', 'Vendi cebola'. Era assim. Com um mês de treinamento, já estavam prontos para o trabalho". Nozari tem hoje 300 operários em duas serrarias e quer abrir uma terceira no distrito de Bujuru.

O prefeito Ferrari tem grandes planos para modernizar sua pequena cidade. Além de escolas e saneamento, pretende, por exemplo, embelezar com uma praça o atracadouro para a ligação com Rio Grande e pensa até na construção de um túnel para a travessia de sete quilômetros da Lagoa. "Uma ponte é impossível por causa da altura das plataformas da Petrobras", explica.

A Votorantim Celulose e Papel (VCP), que já planta eucaliptos no sul do Estado, pretende também instalar sua fábrica na região (Rio Grande, Pelotas, Arroio Grande, Pedro Osório, Capão do Leão e Cerrito estão no páreo). Ao contrário do que se poderia esperar, não se estabeleceu uma guerra fiscal entre os prefeitos. Decidiram que o município a ser escolhido no ano que vem pela VCP (investimento de R$ 600 milhões) ficará com 50% do adicional de ICMS gerado pela fábrica e os 50% restantes serão divididos entre os demais. O PT é adversário de todos os outros partidos com prefeituras na região, mas os seus prefeitos de Bagé e Santa Maria se uniram aos adversários de Rio Grande, Pelotas e Uruguaiana (este, do PSDB) para pleitear em conjunto um empréstimo do Banco Mundial de US$ 100 milhões.

Rio Grande e Pelotas já foram aquinhoados com suas primeiras verbas do PAC para investimentos na infra-estrutura urbana e no saneamento, necessários para dar suporte aos milhares de empregos a serem criados. Só em Rio Grande, segundo o prefeito Janir Branco, estão decididos e até mesmo em implantação investimentos da ordem de US$ 2,4 bilhões, com a geração de mais de 5 mil postos de trabalho. "Precisamos escolas de formação profissional, moradia, água, esgoto, e muito mais", reconhece Branco. A construtora WTorre já anunciou que vai construir um conjunto para três mil casas. É grande a procura de lotes urbanos, que sobem de preço. As fornecedoras da Petrobras encontram dificuldades para contratação de mão-de-obra qualificada. A NHT, empresa de transporte regional - aviões para 18 passageiros - ampliou de um para três seus vôos diários de Porto Alegre a Pelotas e Rio Grande nos dias úteis e já há um vôo no sábado e outro no domingo. Mas Rio Grande se ressente da falta de hotéis e executivos têm de hospedar-se em Pelotas, a 65 quilômetros. Tem mais: a BR-101, totalmente asfaltada, já está chegando (novembro) ao seu extremo meridional, exatamente em São José do Norte. Isso permitirá a ligação de cidades e centros produtores de eucaliptos e pinus situados numa franja arenosa, esquecida e espremida entre a Lagoa dos Patos e o mar.

A governadora Yeda Crusius reconhece que o progresso "chegou meio que de repente", e que, em dois anos - quando estiver no auge de sua concretização tudo o que se prevê de bom para a região - o serviço prestado pelo Estado e pelas prefeituras tem que "estar em linha" com os investimentos atraídos. "Temos projetos", diz, "e estamos correndo para realizá-los".

O presidente do sindicato dos portuários de Rio Grande, Clênio Fagundes Nunes, o "Galinho", faz questão de destacar: "Nunca um governo investiu tanto em portos quanto o do presidente Lula. Não se pode negar que a Petrobras impulsionou tudo isso, cumprindo promessa de campanha do PT. Ao ser criado um pólo metalmecânico, com a construção de plataformas e o dique seco, isso vai repercutir diretamente no trabalhador. Teremos aqui até um forte sindicato de metalúrgicos".

A governadora evita o debate apaixonado e afirma: "O importante é que há uma sincronia entre o que o governo federal está fazendo e o que, nós, do PSDB, sempre pensamos. Essa sincronia facilita nosso trabalho. Precisamos de mais ensino técnico em Rio Grande, por exemplo, e parece que o Ministério da Educação também pretende entrar nessa área. Então, viva a competição!"

O prefeito Janir Branco, que, em Brasília, recentemente, elogiou a ministra Dilma e foi retribuído, em Rio Grande, com elogios da ministra, diz que não está preocupado com a disputa partidária e nem com as eleições municipais do ano que vem. Mas dá uma mostra de como será essa campanha. "O PT dirá que o governo federal fez os investimentos e diremos que, quando apareceu o dinheiro do PAC, nós tínhamos os projetos. Mostraremos nossa competência".

A governadora vai mais ou menos no mesmo tom: "O importante é que não só o pólo naval está sendo criado em torno de Rio Grande, mas também o pólo madeireiro (Aracruz e Votorantim). E haverá uma revolução no transporte hidroviário. O investimento é atraído quando se percebe que há ambiente amigável para os negócios".

É fato. Quando a secretária estadual do Meio Ambiente criou obstáculos à aprovação dos planos da Aracruz e da Votorantim, Yeda a demitiu e criou uma força tarefa para apressar as liberações de licenças ambientais. Mesmo assim, a Votorantim se queixa de provável atraso na operação de sua futura fábrica de celulose. Para 2012, data prevista para inauguração da fábrica, já há eucalipto, plantado em 2005, mas como a árvore leva sete anos para crescer, com a demora nas atuais liberações pode faltar matéria prima em 2014.