Título: A mordaça do superávit primário
Autor: Charneski , Bolívar
Fonte: Valor Econômico, 13/09/2007, Opinião, p. A12

Utilizado para avaliação das contas nacionais, o superávit primário está determinando o bloqueio da economia, as elevadas taxas de juros e o aumento da arrecadação e dos gastos públicos. Uma mordaça que causa, além disso, fantástico engodo quanto ao desempenho da economia brasileira.

O denominado superávit primário foi escolhido como principal instrumento de avaliação das contas nacionais depois da crise cambial de 1999. Na sua composição, contempla a arrecadação de todos os tributos - inclusive sobre os juros da dívida -, menos os gastos e investimentos. Não inclui os gastos totais de juros da dívida - que comporão o déficit nominal -, mas apenas o pouco que é pago. É também utilizado como ferramenta para o sistema de metas (projeção) para o desempenho da economia, incluindo a inflação. A comparação com o Produto Interno Bruto (PIB) indica uma das performances da economia e o seu desempenho em relação às metas.

Por sua estruturação, o bloqueio da economia ocorre na medida em que o crescimento acentuado do PIB altera as metas e o desempenho para o superávit primário. Vale dizer: como a medida de desempenho ocorre pela equação PIB versus superávit primário, qualquer variação significativa em um dos seus componentes irá alterar o resultado percentual. Se a economia (o PIB) crescer mais que a geração do superávit primário, as metas não serão alcançadas e o melhor desempenho da economia se mostrará negativo, percentualmente, nas contas públicas. O superávit primário será menor.

De outro lado, as elevadas taxas de juros são importante instrumento de arrecadação. Todos os juros ofertados pelo governo sobre suas dívidas estão sujeitos a tributação, de uma ou de outra forma. E a arrecadação compõe o cálculo do superávit primário, o que não ocorre com a totalidade das despesas com juros, mas apenas aquelas parcelas (poucas) de juros efetivamente pagas pelo governo.

O vice-presidente José Alencar declarou recentemente que o Brasil gastou cerca de R$ 600 bilhões de juros apenas no primeiro mandato do governo Lula. Mas, ao contrário do que referiu o vice-presidente, não se trata de dinheiro efetivamente pago, mas oferecido (provisionado) para os credores. O que em contabilidade se chama "regime de competência", em contraposição ao "regime de caixa".

Entretanto, sobre o mesmo valor de juros provisionados, o governo federal arrecadou, na "boca do caixa", no mínimo R$ 150 bilhões (taxa média de 25% sobre os R$ 600 bilhões). Arrecadação, essa que, ao contrário dos juros provisionados, compuseram o superávit primário. Assim, a boa intenção do vice-presidente - quando sugere que poderia ter havido uma economia de R$ 300 bilhões - se esvai no fato de que os juros são hoje instrumento de arrecadação tributária. A redução dos juros pelo regime atual (apenas provisionar) não significa disponibilidade de caixa, mas apenas a diminuição do crescimento da dívida.

-------------------------------------------------------------------------------- A redução dos juros pelo regime atual não significa disponibilidade de caixa, mas apenas a diminuição do crescimento da dívida --------------------------------------------------------------------------------

Como efeito colateral, o eixo da economia nacional desloca-se da atividade produtiva para uma visão essencialmente financeira - na maioria das vezes, simplesmente especulativa -, elevando o custo para a atividade produtiva interna e, pela valorização do real, retirando competitividade para a exportação. Nesse escopo, a recente redução da taxa de juros básica da economia para 12% ao ano é irrelevante, pois os juros reais no Brasil continuam os mais altos do mundo.

A reafirmação desses aspectos pode ser ainda comparada com países de economia mais saudável. Nesses, a elevação das taxas de juros é instrumento de consumo. No Brasil, a economia não cresce, mas o endividamento atinge níveis preocupantes. Os chamados créditos consignados são exemplo de aumento do endividamento sem correlação com aumento do consumo.

Ademais, estreitando o nó da mordaça, verifica-se a aflitiva situação dos Estados que renegociaram suas dívidas com a União mas não participam da arrecadação que as mesmas têm oferecido à União. A dívida dos Estados está permitindo à União ampliar sua arrecadação para gerar superávit primário sem que eles participem do bolo, pois não arrecadam imposto sobre resultados financeiros. Quem sabe por isso, Estados não valorizam tanto a situação de suas contas com base em superávit primário.

O desempenho efetivo das contas públicas, aquele que leva em conta o total dos gastos de juros, não está sendo devidamente considerado pelo mercado e pelo próprio governo. Em 2005, o déficit nominal - o verdadeiro, após os juros - foi de R$ 104,5 bilhões, correspondendo a 21,4 % da receita total da União de R$ 448,4 bilhões no ano; entretanto, foi enaltecido apenas o superávit primário de R$ 52,6 bilhões.

Dessa forma, talvez, a discussão que se faz do efeito da carga tributária sobre o PIB deva, necessariamente, incluir a mordaça do superávit primário. Por essa, o PIB não cresce, mas a carga tributária leva junto parcela significativa de arrecadação sobre os juros. A discussão das taxas de juros também é importante para discutir esses efeitos na arrecadação e forçar a redução de gastos de discutível apreciação. Caso contrário, no mínimo estamos concordando em transferir para outras gerações a dívida que concordamos em aumentar.

É decisivo adotar o conceito - doloroso, mas verdadeiro - do déficit nominal (é o que realmente temos) como instrumento de medição do desempenho da economia, abandonando o superávit primário. Esse instrumento guarda analogia nas empresas, com o conceito de EBIT - Earnings Before Interest and Tax. Lucros antes dos juros e impostos para avaliar a capacidade de gerar caixa para pagamento de dívidas. No governo, o superávit primário se tornou ferramenta para arrecadar e produzir todos os efeitos danosos acima referidos, menos para pagar dívidas. Estamos numa camisa de força. A qualificação - a melhor transparência - das contas públicas pode ajudar a desamarrá-la.

Bolívar Charneski é sócio-fundador da Charneski - Auditores & Consultores bolivar@charneski.com.br