Título: Procedimentos de fiscalização da Anac não atendem a padrões internacionais
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 06/11/2007, Brasil, p. A2

Sem inspetores em quantidade suficiente, as atividades de fiscalização da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) estão aquém dos procedimentos de segurança recomendados por padrões internacionais. Em 2006, segundo balanço da agência, o número de horas dedicadas à fiscalização cumpriu com somente 42% das atividades sugeridas pela Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci), entidade ligada à ONU que se dedica ao setor.

Com a necessidade de definir prioridades, a Anac resolveu voltar atenções às empresas aéreas regulares, para não comprometer a segurança da maioria dos passageiros. Técnicos da agência reconhecem que essa prioridade tem causado prejuízo ao monitoramento de operações da aviação executiva.

Levando em consideração fatores como o tamanho da frota e o quadro de tripulantes das empresas aéreas brasileiras, fiscais da Anac deveriam ter gastado 125.092 horas para uma "efetiva supervisão" do setor, de acordo com balanço feito pela Superintendência de Segurança Operacional da agência reguladora.

Cumprir essa meta no ano passado teria exigido o trabalho de 87 inspetores, já que cada profissional tem carga de trabalho máxima de 6,5 horas por dia, 20 dias úteis por mês e 11 meses por ano. O quadro de inspetores, no entanto, era de 36 inspetores - suficiente para apenas 51.894 horas de fiscalização. Atualmente, esse número caiu para 33 inspetores. A supervisão de companhias aéreas, empresas de manutenção aeronáutica, acompanhamento de vôos e perícias de tripulantes está entre as obrigações da Anac, depois traduzidas em número de horas.

O padrão recomendável da Oaci para verificar o cumprimento de normas técnicas por pilotos e co-pilotos é de inspeção, a cada seis meses, de 20% do total de tripulantes no exercício da profissão. Só isso teria consumido quase 32 mil horas dos técnicos da Anac em 2006, ou seja, mais da metade das horas efetivamente trabalhadas. Para fins práticos, isso significa que o exame de pilotos e co-pilotos não tem sido feito da forma como sugere a Oaci.

De um total de 700 aeródromos públicos no país - os aeroportos da Infraero e aqueles sob administração estadual -, a escassez de profissionais especializados da Anac tem permitido a fiscalização de pouco mais de 100. Também afeta em cheio as ações sobre oficinas de manutenção usadas largamente pela aviação executiva. Para funcionar, elas são certificadas pela Anac e depois inspecionadas de tempos em tempos. Sem fiscais para fazer esse serviço, essas inspeções são mais dilatadas.

Em menor escala, o déficit de pessoal prejudica ainda a inspeção das companhias regulares. Houve corte, por exemplo, no volume de "blitze" dos fiscais em vôos comerciais. Nessas ações, que costumam reunir cinco especialistas em áreas diversas, os fiscais fazem uma espécie de "batida" inesperada nos aviões das companhias aéreas que estão prestes a embarcar passageiros, checando se os procedimentos de segurança foram cumpridos e se a habilitação dos pilotos está em conformidade com as regras.

O ex-presidente da Anac Milton Zuanazzi disse na semana passada que um dos principais problemas da agência é a falta de pessoal para esse tipo de atividade. O déficit na fiscalização não significa o descumprimento de normas mínimas e obrigatórias de segurança operacional definidas pela Oaci. Não há, portanto, motivo para pânico. O problema é que, ao contrário da maioria dos países ricos, o Brasil não cumpre com a cartilha de "Padrões e Práticas Recomendáveis" da organização internacional.

O brigadeiro Renato Cláudio Costa Pereira, ex-secretário-geral da Oaci, teme o ressurgimento de um conflito de interesses entre órgão fiscalizador e empresas aéreas. "Como não há inspetores em nível suficiente, começa a haver uma promiscuidade entre agência e companhias", alerta Pereira. Explica o brigadeiro: na falta de fiscais da Anac, o serviço pode ficar com inspetores das próprias empresas, autorizados pela agência a avaliar a qualidade da manutenção de aeronaves das mesmas empresas para as quais trabalham. Segundo ele, a situação era comum no Brasil quando esteve no comando da Oaci, entre 1997 e 2003, e pode estar se repetindo agora. "Não se pode dizer que os técnicos das empresas sejam desonestos em nada, mas esse tipo de situação não é aceitável."

A presença "in loco" e constante dos fiscais muitas vezes pode tornar-se imprescindível, considera Pereira. Foi o caso das ações fiscalizatórias na Vasp, em 2004, às vésperas do fim das operações da empresa. Naquele episódio, conta Pereira, os aviões só voavam com inspeção dos agentes do extinto Departamento de Aviação Civil (DAC) - não bastava o aval dos técnicos da Vasp.

Pereira acredita que, ao cumprir com apenas 42% da carga laboral recomendada pela Oaci, o Brasil enfrentará sérios problemas na próxima auditoria internacional, prevista para fevereiro de 2009. "Se o déficit é dessa ordem, não podemos acreditar na eficácia do sistema aeronáutico brasileiro."