Título: O "Big Bank" do capitalismo financeiro
Autor: Braga , J. Carlos
Fonte: Valor Econômico, 08/10/2007, Opinião, p. A12

O Banco Central da Europa foi o primeiro, seguido, após percalços, pelos bancos centrais americano e inglês, a fazer uma demonstração inequívoca. O "Big Bank" tem o papel intrínseco de resgatar o capitalismo financeiro nas encruzilhadas em que este dá sinais de que não é capaz de resolver as instabilidades globais que ele mesmo criou. Amplia-se a liquidez, criam-se distintos mecanismos de apoios, reduzem-se as taxas de juros.

Por isso, as três decisões tomadas foram coerentes e compreensíveis ainda que duas delas tenham sido antecedidas de dúvidas, polêmicas e condenações morais. A questão seguirá atiçando argumentos e interesses. Na Europa, a imprensa já comenta o surgimento das novas bolhas financeiras nos países emergentes originadas supostamente pelas decisões adotadas.

A verdade é que, quem quer que seja o "comandante" de bancos centrais relevantes, estará obrigado a tomar essa decisão: impedir que a desvalorização da riqueza financeira se agrave, que se torne pó a riqueza de papel acumulada no "boom financeiro".

Sem a Alta Finança Moderna não se entende o significado de capitalismo financeiro nos dias de hoje. Ela é formada também, e aqui está importante novidade da globalização, pela tesouraria ou pelos departamentos financeiros das próprias corporações produtivas. Para elas as finanças são um objetivo específico e assim o valor de seus ativos financeiros. Os interesses delas juntam-se aos dos bancos e demais organizações monetárias, bem como aos de grandes poupadores financeiros, para forjar o núcleo duro - a Alta Finança - do capitalismo financeiro atual.

Pois bem. Desde a catástrofe da década de 1930, iniciada com o crash de 1929 na Bolsa de New York, a Alta Finança e os governos sabem como fazer com que a direção do "Big Bank", eventualmente recalcitrante, tome o "rumo certo".

Toda a fala e a escrita que antecederam as decisões salvadoras dos bancos centrais sobre os estilos dos presidentes dos mesmos, as análises de seus discursos, o palavrório sobre "moral hazard", não passavam de conversa de quem queria turvar a água ou de quem ainda não entendeu do que se trata nesse capitalismo financeiro.

-------------------------------------------------------------------------------- Os BCs e os Tesouros tornaram-se reféns dos mercados e assim ficarão se não mudar o padrão sistêmico de riqueza --------------------------------------------------------------------------------

A propósito das instabilidades financeiras americanas e mundiais do início desta década, este autor escreveu no Valor de 27/09/2001 (pg. A8): "Segundo os princípios vigentes na 'era global', se a realização de lucros e a valorização financeira dos ativos vão bem, cabe ao Estado não atrapalhar (sic!). Quando é o momento de decréscimo da riqueza 'inflacionada' e de crises econômicas convoca-se o Estado para evitar as perdas patrimoniais privadas".

Talvez a presente crise imobiliária americana tenha sido, dentre as crises financeiras do pós-Segunda Guerra Mundial, aquela mais previamente anunciada. A surpresa não foi sua ocorrência, mas a extensão com que ela penetrou os sistemas financeiros nacionais e os mais distintos atores, e a forma insinuante e insidiosa de inovações financeiras. Viu-se a omissão das autoridades monetárias, supervisoras, fiscalizadoras etc.

Como se sabe, os empréstimos imobiliários feitos por instituições americanas do ramo foram revendidos para financistas organizados em fundos de investimento, fundos de pensão, e "hedge funds" que encontravam garantia nas prestações dos imóveis e, em último caso, no próprio valor dos mesmos imóveis, que passaram a se elevar consideravelmente com a especulação que se armava. Uma perversa "inovação", sabe-se, teve lugar quando semelhante operação passou a ocorrer com hipotecas para tomadores de "alto risco" - subprime borrowers.

A partir daí o percurso da inovação financeira tomou o rumo da geografia mundial sob o comando de grandes atores do mercado, e por isso engendrou-se uma turbulência global. Os empréstimos inicialmente eram reagrupados em títulos caucionados em hipotecas (MBS - Mortgage-backed securities) que possuem um mercado secundário altamente líquido e dinâmico nos Estados Unidos. Em seguida, esses MBS eram adicionados a outros títulos (débitos de cartões de crédito, aluguéis de automóveis, "recebíveis" de corporações etc) e reagrupados em outros títulos hipotecários caucionados. Eis mais uma operação de inovação financeira, cujo produto denominou-se collateralized debt obligations securities, as CDOs securities. Traduzindo: títulos de créditos estruturados (para os aplicadores), denominados de Obrigações de Débito Caucionadas, para, evidentemente, os devedores.

Essas invenções financeiras dos bancos de investimento, segundo o "Financial Times", "eram confeccionadas para clientes específicos . nunca comercializadas . não eram continuamente validadas através de um mercado secundário ativo". Compreende-se, segundo Richard Beales, autor de artigo abaixo mencionado, que "se tenha colocado a questão sobre se de fato hedge funds, investment banks e até fundos de pensão e grupos de seguro sabiam o quanto valiam os títulos que eles detinham". ("Financial Times", August 10, 2007, "US niggle became global problem" - "Uma questão mesquinha americana tornou-se um problema global", Richard Beales).

As autoridades monetárias e as relacionadas ao setor deixaram correr solto. Nada de fiscalização, intervenção ou prevenção foi feito, a despeito de todo o debate que anunciava o que estava por vir.

Na "alta", só há o mercado; na "baixa", todos os "entendidos" querem o Estado. Nesse processo, a discussão do moral hazard, ou seja, o risco de que os gestores privados de riqueza operem de maneira indisciplinada financeiramente ao terem como certa a intervenção pública para evitar um crash financeiro, beira a hipocrisia, já que nas atuais condições não há alternativa. Os bancos centrais e os tesouros tornaram-se reféns dos mercados, e assim permanecerão enquanto não mudar o padrão sistêmico de riqueza. Não são as intervenções públicas para evitar catástrofes que insuflam as incorretamente denominadas bolhas. É o capitalismo financeiro atual que engendra uma instabilidade financeira estrutural.

José Carlos Braga é Professor Livre Docente e Diretor do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais do Instituto de Economia da Unicamp; Secretário de Abastecimento e Preços do Ministério da Fazenda-1986-1987.