Título: Oferta de serviços públicos e distribuição da renda
Autor: Sicsú , João
Fonte: Valor Econômico, 09/11/2007, Opinião, p. A14

A partir do estudo "Os ricos no Brasil", Marcio Pochmann identificou que 20 mil clãs familiares, grupos riquíssimos, se apropriam de aproximadamente 70% dos juros que o governo paga aos detentores dos títulos da dívida pública. Pode-se supor que um clã familiar seja formado por um conjunto de 50 pessoas: avôs, avós, pais, mães, tios, cunhados, cunhadas, sogros, genros, noras, sogras, primos, primas, irmãos, irmãs e bebês.

Fica fácil fazer a conta para saber quanto cada membro de um desses clãs ganhou por mês, em média, em 2006. Neste mesmo ano, foram destinados pela União ao pagamento de juros da dívida interna mais que R$ 152 bilhões. Somente desta fonte, cada rentista rico embolsou por mês R$ 8.873,38 de renda bruta. Imaginem: até os bebês pertencentes a esses clãs obtiveram essa magnífica renda. O governo federal, também no ano de 2006, possuía 2.284.522 funcionários inativos e ativos, militares e civis em todos os poderes. Por seu trabalho, ou por já terem trabalhado, cada um ganhou em média, como renda mensal bruta, R$ 3.785,30.

Para obter o seu salário, o funcionário público deve necessariamente trabalhar. Já o bebê rentista obtém sua renda apenas brincando - ainda não pode trabalhar e poderá permanecer nessa situação por muito tempo. Poderá permanecer improdutivo mesmo quando se tornar pai ou mãe, tia ou tio, sogro ou sogra, nora ou genro, avô ou avó. Afinal, uma renda mensal superior a R$ 8 mil, obtida sem qualquer esforço, é satisfatória. Ademais, o rentistazinho possui um brinquedo cujo nome conhecerá apenas quando for adulto, chamado estoque de ativos financeiros. Ele poderá eventualmente utilizá-lo de forma parcial para comprar, por exemplo, uma bela mansão.

Há mais disparidades na comparação entre a vida de um funcionário público e um bebê rentista. Pode-se supor que o núcleo familiar do bebê que compõe o clã seja formado por quatro pessoas: o pai, a mãe, o baby rentista e sua irmãzinha. Uma bela família, com uma renda bruta (brutal) mensal obtida somente junto ao governo federal de mais de R$ 35 mil. Pode-se supor que um núcleo familiar de um funcionário público seja composto da mesma forma que o núcleo do bebê rentista. Se os cônjuges deste núcleo, ambos, forem funcionários públicos, a renda do núcleo de trabalhadores valerá aproximadamente 1/5 da renda do núcleo do baby rentista.

-------------------------------------------------------------------------------- Contratar mais de um milhão de funcionários públicos em curto espaço de tempo não seria uma aventura tupiniquim --------------------------------------------------------------------------------

Há algumas conclusões que podem ser tiradas desta fábula real. Primeiro, se o governo pagasse uma renda aos bebês rentistas e a seus familiares, credores da dívida pública interna, igual àquela que paga aos funcionários públicos, teria recursos para contratar 1.212.780 novos funcionários. E esta é a condição básica para que haja um choque de oferta de serviços públicos de qualidade no país. Hoje a União possui apenas um pouco mais que 1.100.000 funcionários ativos. Poderíamos, então, contratar milhares de médicos, professores, assistentes sociais e fiscais, entre outros profissionais, para servir a sociedade.

Contratar mais de um milhão de funcionários públicos em curto espaço de tempo não seria uma aventura tupiniquim. No Reino Unido, "antecipando uma mudança do ciclo econômico, Gordon Brown utilizou o gasto [público] de forma contracíclica para manter o crescimento. Na mais pura tradição keynesiana, esse gasto público passou a ter papel importante na criação de empregos: entre 1998 e 2003, mais de 500.000 empregos foram criados no setor público, o que permitiu manter o crescimento". (F.Faucher-King e P.Galès, no livro "Tony Blair, 1997-2007: Le Bilan des Réformes", Editora da Sciences Po, Paris: 2007, pag. 34).

Contratar mais de um milhão de funcionários no Brasil equivale, em termos proporcionais, a fazer o que fez o Reino Unido: abriríamos concursos públicos para contratar um pouco menos que 1% da população, tal como fez Tony Blair. Ademais, lá no Reino Unido, "o orçamento do National Health Service (Serviço Nacional de Saúde) dobrou entre 1997 e 2005 (...). O tamanho do gasto público como proporção do PIB subiu, passando de 36% do PIB, em 1998, para 44%, em 2005" (idem, pag. 34). No Brasil, não seria necessário aumentar os gastos da União para realizar o choque de oferta de serviços públicos de qualidade: bastaria reduzir o gasto com o pagamento de juros, que não gera empregos nem bem-estar, e aumentar o gasto na rubrica "despesas com pessoal e encargos".

A segunda conclusão é que se deve analisar a distribuição funcional da renda, dado que o índice de Gini, que mede a desigualdade de renda com base na Pnad-IBGE, não capta as diferenças de renda entre o funcionário público e o bebê rentista - o índice de Gini mede a diferença entre as rendas que remuneram o trabalho, portanto, não leva em conta as rendas do capital: juros e lucro. A distribuição funcional da renda no Brasil, em 1995, era a seguinte: o total pago na forma de salários como proporção do PIB era superior a 35%, enquanto, as rendas do capital eram um pouco superiores a 31%. Dez anos depois, em 2005, as posições se inverteram. A proporção do total de salários no PIB é inferior a 31%, enquanto, a proporção das rendas do capital está quase alcançando 36%. Mais preocupante ainda, além dos números destacados, é a trajetória indicada no gráfico, em que o ano 1 corresponde à 1995 e o ano 10 à 2004.

Mais uma conclusão é que a dívida pública de oferta de serviços com a sociedade é muito maior do que a dívida pública com os clãs credores. O governo deve honrar as suas dívidas, deve pagar o serviço financeiro de acordo com os prazos contratuais e, além disso, deve ofertar serviços públicos de forma universal e de qualidade. Mas deve pagar juros civilizados aos clãs credores para que possa ter condições de honrar os compromissos sociais estabelecidos na Constituição do Brasil.

Vamos fazer o que os países do Norte - por exemplo, o Reino Unido - fazem. Não vamos fazer o que eles recomendam. Devemos contratar funcionários públicos, reduzir as desigualdades de renda entre capital e trabalho e ofertar, pelo menos, serviços de saúde e educação de qualidade para todos.

João Sicsú é diretor de Estudos Macroeconômicos do IPEA e professor do Instituto de Economia da UFRJ.