Título: Ele quer o poder
Autor: Sabadini, Tatiana; Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 20/01/2011, Mundo, p. 26

Advogado e porta-voz de Baby Doc revelam que o ex-ditador deseja retornar à Presidência. Vítimas entram com denúncias na Justiça

Porto Príncipe e Brasília ¿ Na sacada do hotel, o ex-ditador haitiano Jean-Claude Duvalier, mais conhecido como ¿Baby Doc¿, apareceu vestindo uma roupa esportiva. Tinha a expressão tranquila, enquanto falava ao celular. Nem parecia um homem indiciado por corrupção e desvio de verbas públicas pelo Estado que comandou com mão de ferro, entre 1971 e 1986. O ex-mandatário, que desembarcou no Haiti depois de 25 anos e foi recepcionado pela Justiça, começa a revelar seu interesse político. No dia em que foi alvo de mais quatro queixas na Justiça haitiana, Duvalier admitiu, por meio de seu porta-voz, que pretende retornar ao poder em plena crise eleitoral.

Durante uma coletiva de imprensa, o advogado do ex-ditador, Raynold Georges, afirmou que Baby Doc tem direito a um segundo mandato. O defensor garantiu que o objetivo de Duvalier é comandar o país novamente. ¿Ele ficará no Haiti para sempre, é o país dele. E vai ter um papel político, é seu direito. Um político nunca morre¿, disse. Para Georges, a inexistência de provas concretas impede que seu cliente seja condenado pelos crimes contra os direitos humanos.

O Haiti enfrenta uma crise eleitoral. O pleito presidencial, realizado em novembro do ano passado, foi alvo de acusações de fraude e, por isso, ainda não tem um resultado oficial. De acordo com Henri-Robert Sterlin, porta-voz de Duvalier e ex-embaixador do Haiti em Paris, o ex-ditador tem planos para pedir a organização de nova votação. ¿Precisamos agitar as coisas, de modo que o pleito seja anulado e que novas eleições sejam organizadas, para que Duvalier possa concorrer¿, afirmou.

Baby Doc deixou para trás um país com pobreza extrema e instabilidade política. Ele também é acusado de ter roubado milhões de dólares dos cofres públicos, quando deixou o país. Os crimes cometidos durante os 15 anos de ditadura nunca foram julgados. O ex-presidente haitiano se exilou no sul da França ao ser expulso do governo depois de uma revolta popular com o apoio de tropas militares. De volta ao Haiti depois de duas décadas, ele deve enfrentar uma série de processos na Justiça. De acordo com seu advogado, Baby Doc está livre para voltar à França, mas escolheu ficar em Porto Príncipe. A capital haitiana foi palco de pequenas manifestações a favor do ex-ditador, que goza de certa influência em boa parte da população ¿ inclusive entre aqueles que nem haviam nascido quando ele esteve no poder.

Simpatizantes Em frente ao Palácio Nacional ainda em ruínas, dezenas de haitianos formam pequenos grupos em busca de trabalho. Entre os desempregados, o descontentamento com o governo do presidente René Préval contrasta com uma surpreendente expectativa sobre o retorno de Baby Doc. ¿Préval não trouxe oportunidades de emprego ao país. Queremos alguém novo¿, disse Edoudon Deluror, 46 anos, em meio a um coro de amigos que chamavam o atual presidente e seu candidato, Jude Celestin, de ¿vagabundos¿. Baby Doc, ao contrário, é visto como ¿bonbagay¿, ou ¿homem bom¿, em crioulo haitiano.

Petilie Moclera, 43 anos, se lembra do ditador como um bom governante, e diz que espera sua volta também ao poder. ¿Ele foi um presidente muito bom, trouxe trabalho, tínhamos casa e comida¿, recorda o haitiano. A simples ideia de que Baby Doc seja preso ou não tenha a oportunidade de concorrer à Presidência é considerada um estopim para a mobilização popular. ¿Nós iríamos para as ruas, não vamos deixar que ele seja preso¿, disse Moclera, apoiado pelo grupo de amigos, todos moradores do campo de desabrigados de Champ de Mars, que fica logo em frente ao palácio. A pelo menos uma hora dali, cerca de 100 apoiadores de Baby Doc se concentraram em frente ao Hotel Karibe, em Pétionville, onde o ex-ditador está hospedado.

Quatro vítimas do regime de Duvalier entraram ontem com três queixas contra ele. Entre eles, dois ex-presos políticos e a jornalista haitiana Michèle Montas, ex-porta-voz da ONU, que tinha uma emissora de rádio na época da ditadura e foi obrigada a deixar o país. ¿Acabamos de apresentar queixas formais por crimes contra a humanidade perante o procurador-geral. Iniciamos processos por detenção arbitrária, exílio forçado, destruição de propriedade privada, tortura e violação moral dos direitos civis e políticos¿, afirmou a ativista, após deixar o Palácio da Justiça haitiano.

Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), uma entidade autônoma da Organização de Estados Americanos (OEA), os culpados pelos crimes não devem continuar impunes. ¿É obrigação do governo haitiano investigar, processar, sancionar e reparar as violações de direitos humanos que constituem crimes sob direito nacional ou internacional¿, afirmou o órgão, por meio de uma nota.

* A repórter viajou a convite do Ministério da Defesa

ARTIGO

Por Antonio Jorge Ramalho da Rocha

Pa fot Mwen...

Há cerca de um século, um diplomata francês, acostumado à complexidade da política haitiana, sintetizou assim sua experiência no Haiti: ¿Em Porto Príncipe, não creio em nada do que me dizem e só acredito na metade do que eu próprio vejo...¿.

Desde então, o país mudou pouco. Suas dificuldades relacionam-se com a complexidade de sua sociedade e de seu sistema político. E o que permanece aponta para futuras complicações: a descrença nas instituições; a convicção generalizada de que a violência constitui meio plausível, até mesmo óbvio, de pôr fim a diferenças políticas; e elites políticas que, desde sempre, se apropriam sem pena das riquezas do país e de seu povo ¿ cuja criatividade e o senso de humanidade encantam os visitantes.

Aliás, talvez essas qualidades ajudem os haitianos a manter o amor-próprio extraordinariamente elevado. Atribui-se aos estrangeiros, desde a independência, a responsabilidade pelos problemas nacionais. Nesse contexto, as elites locais consideram-se, e são consideradas, ¿brancas¿, estrangeiras, no sentido local do termo. Ao retornar neste momento, Baby Doc ilustra bem essa habilidade de ampliar a complexidade da situação, levando o país à beira do abismo, situação em que alguns líderes passam a ser considerados indispensáveis, ampliando seu acesso aos recursos que desejam controlar.

Ele não voltou sem a anuência de parte dos governantes. E não está claro se será mantido em cárcere, já que o próprio Judiciário está em reforma, carente de instalações e pessoal para prover justiça. Tampouco surpreenderá a volta de Aristide, cujo partido se recusou a cumprir as exigências legais para participar das eleições. Ou a proposta, que já se nega ¿em off¿, de se postergar o mandato do presidente Préval, até que se controle a atual crise e se realizem eleições mais transparentes.

Aristide e Baby Doc estimulam a violência política no país. Por enquanto, as forças de paz poderão manter a ordem. Mas arcarão com os custos disso. E, assim, alimentarão a tradicional prática das elites políticas locais de se negarem a assumir as responsabilidades pelas encruzilhadas haitianas. É o que diz o título deste artigo, em crioulo haitiano.

» Antonio Jorge Ramalho da Rocha é professor de relações internacionais da Universidade de Brasília e viveu no Haiti em 2008.