Título: A fracassada militarização dos EUA
Autor: Sachs , Jeffrey D.
Fonte: Valor Econômico, 26/11/2007, Opinião, p. A14

Muitas das atuais zonas em guerra - como Afeganistão, Etiópia, Irã, Iraque, Paquistão, Somália e Sudão - compartilham problemas básicos na raiz de seus conflitos. Esses países são, todos, pobres, vítimas de desastres naturais - especialmente enchentes, secas e terremotos - e têm populações em rápido crescimento que estão pressionando a capacidade do solo de alimentá-los. E a proporção de jovens é muito alta, produzindo crescente juventude em idade militar (15 a 24 anos).

Todos esses problema só podem ser solucionados por desenvolvimento econômico sustentável no longo prazo. Apesar disso, os EUA persistem em reagir aos sintomas, em vez de atacar as raízes subjacentes do problema, e tentam solucionar cada conflito por meios militares. Os EUA apóiam o exército etíope na Somália. Ocupam o Iraque e o Afeganistão. Ameaçam bombardear o Irã. Apóiam a ditadura militar no Paquistão.

Nenhuma dessas ações militares ataca os problemas que originalmente produziram o conflito. Ao contrário, as políticas americanas normalmente inflamam a situação, em vez de trazer soluções.

Repetidas vezes, essa abordagem militar produz reações que voltam para assombrar os americanos. Os EUA apoiaram o xá do Irã enviando enorme quantidade armamentos que caíram nas mãos do governo revolucionário iraniano após 1979. Os americanos depois apoiaram Saddam Hussein em seu ataque contra o Irã, até que acabaram atacando o próprio Saddam. Os EUA apoiaram Osama bin Laden no Afeganistão contra os soviéticos, e então os americanos terminaram lutando contra bin Laden. A partir de 2001, os EUA apoiaram Pervez Musharraf no Paquistão com mais de US$ 10 bilhões em ajuda, e agora defronta-se com um regime instável mal capaz de sobreviver.

A política externa americana é assim ineficaz porque foi apropriada pelo establishment militar. Até mesmo a reconstrução do Iraque no pós-guerra sob a ocupação liderada pelos americanos foi administrada pelo Pentágono, e não por agências civis. O orçamento militar americano domina tudo o que esteja relacionado com política externa. Somando os orçamentos do Pentágono, das guerras no Iraque e no Afeganistão, do Departamento de Segurança Interna, dos programas de armas nucleares e das operações de ajuda militar do Departamento de Estado, neste ano os EUA irão gastar em torno de US$ 800 bilhões com segurança, em comparação com menos de US$ 20 bilhões destinados a desenvolvimento econômico.

Em espantoso artigo sobre a ajuda ao Paquistão durante o governo Bush, Craig Cohen e Derek Chollet demonstraram a desastrosa natureza dessa abordagem militarizada, antes mesmo da mais recente onda de repressão promovida pelo claudicante regime de Musharraf. Os autores mostram que, apesar de o Paquistão viver enormes problemas de pobreza, populacionais e ambientais, 75% dos US$ 10 bilhões em ajuda americana foram destinados ao militares paquistaneses ostensivamente para reembolsar o Paquistão por sua contribuição para a "guerra ao terror" e para ajudar o país a comprar caças F-16 e outros sistemas de armamentos.

-------------------------------------------------------------------------------- Política externa americana é ineficaz porque foi apropriada pelo establishment militar e enxerga apenas caricaturas: um terrorista em cada esquina --------------------------------------------------------------------------------

Outros 16% foram diretamente para o orçamento paquistanês, sem quaisquer questionamentos. Com isso, sobraram menos de 10% para assistência ao desenvolvimento e humanitária. A ajuda americana anual ao ensino no Paquistão somou apenas US$ 64 milhões, ou US$ 1,16 por criança em idade escolar.

Os autores apontam que "o rumo estratégico para as relações com o Paquistão foi determinado logo cedo por um estreito círculo no alto escalão do governo Bush e tem se concentrado predominantemente no esforço bélico, em lugar de tomar como alvo a situação interna paquistanesa". Cohen e Chollet também enfatizam que o "engajamento americano com o Paquistão é extremamente militarizado e centralizado, e muito pouco beneficia a vasta maioria dos paquistaneses". Eles citam George Bush como autor da frase: "Quando [Musharraf] me olha nos olhos e diz 'o Taleban vai desaparecer e não haverá mais al-Qaeda', você sabe, eu acredito nele?"

Essa abordagem militarizada está empurrando o mundo para uma espiral descendente de violência e conflitos. Cada novo sistema de armamentos que os americanos "vendem" ou dão à região faz crescer os riscos de guerra mais ampla e de novos golpes militares, e aumenta a probabilidade de que as armas venham a ser apontadas para os próprios EUA. Nada disso ajuda a atacar os problemas subjacentes à pobreza, mortalidade infantil, escassez de água e ausência de fontes de subsistência em regiões como a Província da Fronteira Noroeste, no Paquistão; a região de Darfur, no Sudão; ou na Somália. É cada vez maior a densidade populacional nesses lugares, onde as pessoas sofrem com chuvas insuficientes e pastagens degradadas. Naturalmente, muitos aderem a causas radicais.

O governo Bush não percebe que esses são problemas demográficos e ambientais fundamentais, que US$ 800 bilhões em gastos com segurança não levarão irrigação ao Afeganistão, Paquistão, Sudão e Somália, e que portanto não produzirão paz. Em vez de enxergar pessoas reais em meio à crise, o governo americano vê caricaturas: um terrorista em cada esquina.

Um mundo mais pacífico será possível somente quando os EUA e outros países começarem a ver a realidade através dos olhos de seus supostos inimigos, e perceberem que os atuais conflitos resultado de impotência e desespero, podem ser resolvidos por meio de desenvolvimento econômico em vez de guerras. Teremos paz quando dermos ouvido às palavras do presidente John F. Kennedy, que disse, poucos meses antes de sua morte, "pois, em última instância, nosso elo básico mais comum é que todos nós habitamos este pequeno planeta. Todos nós respiramos o mesmo ar. Prezamos o futuro de nossos filhos. E somos todos mortais".

Jeffrey D. Sachs é professor de economia e diretor do Instituto Terra, na Universidade Colúmbia. É também assessor especial do secretário geral da ONU para os Metas de Desenvolvimento do Milênio. © Project Syndicate/Europe´s World, 2007. www.project-syndicate.org