Título: Fenômeno do crédito sustenta demanda
Autor: Marília de Camargo César e Sergio Lamucci
Fonte: Valor Econômico, 03/02/2005, Brasil, p. A3

O crescimento do consumo está sendo sustentado por uma revolução que está acontecendo no mercado de crédito, ainda subavaliada pelos analistas. Esse novo consumidor, que compra via crédito consignado, com desconto em folha, ou que teve no ano passado acesso a uma prestação que pela primeira vez coube em seu orçamento, está neutralizando os efeitos do aperto de política monetária, pelo qual o Banco Central eleva os juros para frear a demanda. Para conter essa expansão, que tende a aumentar neste ano por conta dos novos acordos feitos entre bancos e grandes redes de varejo, o BC teria que aumentar os juros ainda além do que o previsto pelo mercado. A opinião é do economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados. Para complicar, a política fiscal é expansionista, devido à forte elevação dos gastos públicos, o que também aumenta os custos da política monetária, segundo analistas. Acertos como o que foi feito entre o Bradesco e a Casas Bahia, que começa a valer neste ano, permitirão engordar o volume de recursos disponível para crédito, aumentar o prazo e, portanto, reduzir a prestação. Na opinião do economista, esta é uma tendência que deve alcançar as redes menores também, potencializando o impacto sobre o consumo. "O crédito está mais farto e mais acessível. O cidadão que tem necessidade e tem um pouco mais de confiança no emprego vai e compra mesmo", comenta Mendonça de Barros. Ele concorda que a demanda reprimida é tamanha que um pouquinho mais de segurança no trabalho já traz de volta a coragem para encarar a dívida, apesar de os juros embutidos serem cada vez mais altos. "Esse efeito torna a política monetária muito menos eficaz. Porque o aumento de juros, quando se tem mais crédito entrando na praça em melhores condições, se traduz em uma negligencíavel queda de demanda". Para controlar esse movimento, a taxa de juros teria que subir mais fortemente, avalia. Os números do BC mostram que o crédito continuou a se expandir mesmo depois que os juros começaram a subir, em setembro. As taxas cobradas aumentaram pouco e o prazo médio continuou a crescer. O juro médio dos financiamentos, por exemplo, passou de 43,9% em agosto para 45% ao ano em dezembro. Num financiamento de R$ 1.000 em 12 vezes, a prestação é de R$ 104,45 com o juro a 43,9% e de R$ 105,01 com a taxa a 45%, segundo cálculos de Miguel José Ribeiro de Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional dos Executivos em Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). O prazo médio das operações de crédito pessoal, por exemplo, subiu de 7,5 meses em dezembro de 2003 para 9,1 meses em dezembro de 2004. No caso do crédito consignado, os prazos são mais longos, atingindo 36 meses, e os juros são bem mais baixos, na casa de 35% ao ano, ante 70,8% do crédito pessoal. O crescimento das operações com desconto em folha impressiona: em dezembro de 2004, haviam atingido R$ 12,4 bilhões - respondendo por 28,5% do estoque do crédito pessoal. Em janeiro de 2004, elas totalizavam R$ 6,319 bilhões, ou 20,5% do volume de crédito pessoal. Para o economista Marcel Solimeo, da Associação Comercial de São Paulo, as operações de crédito consignado e a expectativa de maior oferta de recursos este ano tendem a impedir uma alta mais significativa dos juros nos empréstimos e financiamentos, assim como evitar encolhimento expressivo dos prazos. Segundo ele, os juros mais baixos dos empréstimos com desconto em folha servem de inibidor de altas maiores de taxas de outras modalidades. O aumento da competição, via taxas mais baixas ou oferta maior, tende a atenuar o efeito das altas da Selic. O ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros concorda que a expansão forte de crédito, com prazos mais longos, tem implicações sobre a política monetária. Para produzir o mesmo efeito sobre a demanda, os juros acabam tendo de subir mais do que seria esperado, e têm de ficar elevados por mais tempo, avalia ele. O economista-chefe da corretora Convenção, Fernando Montero, explica que, além da expansão do crédito, a política fiscal expansionista também aumenta o custo da política monetária. Em 2004, as despesas do governo federal aumentaram mais de 10% em termos reais, e tudo indica que vão continuar a crescer neste ano. Ele lembra que o superávit primário (resultado das contas públicas antes do pagamento de juros) foi de 4,61% do PIB no ano passado, e a meta para 2005 é menor, de 4,25% do PIB. Com expectativa de aumento de receitas e de gastos, a política fiscal vai repetir o padrão de 2004, diz. O economista da MB vê com desconforto essa combinação de elementos da política macroeconômica, formada por forte aumento de gastos públicos, elevação constante de impostos e o par juro-câmbio, que Mendonça de Barros não acha "particularmente sustentável ao longo do tempo". "Quanto mais elevar os juros, mais vai derrubar o dólar. Fica enxugando gelo". Para ele, o BC deveria estar preocupado com a valorização do real, que futuramente terá conseqüências sobre a balança comercial. "Mas está mais preocupado com a inflação". Para o economista, existe, sim, uma pressão sobre os Índices de Preço ao Consumidor (IPCs) que justifiquem esses movimentos do BC. Quando analisado o núcleo do IPCA ao longo de 12 meses, ele nunca fica menor que 7%, observa ele. Para quem almeja atingir 5,1% o patamar atual é inadequado. Ele lembra, porém, que persiste o problema causado pelo peso dos preços administrados, as tarifas públicas, que representam 35% do IPC. "A mãe de todos os problemas é a meta de inflação muito ambiciosa." Mas essa demanda proveniente do crédito não é suficiente para abrir espaço para grandes reajustes de margem, segundo ele. As empresas que sofreram com aumentos de custo de produção por causa da alta do aço e de derivados de petróleo estão tentando recompor minimamente suas margens, o que, para Mendonça de Barros, é uma processo natural. Mas haverá novas pressões nas próximas semanas, prevê. "Ainda falta sair transporte público e o setor de aço, que está anunciando novos aumentos". Todos esses novos fatores não impedirão que o PIB do país cresça cerca de 4% neste ano, a não ser que haja algum problema muito grave na cena internacional. Mas, para o economista da MB, eles tiraram um pouco do brilho dos bons resultados obtidos no ano passado. "Se a tendência do comércio exterior é contribuir menos para o crescimento e se, via taxa de juros, a demanda ainda for afetada, olho para frente com certo desconforto".